Álcool no sangue de cadáveres: uma revelação.

Estive pensando sobre a dosagem de alcoolemia e uma dúvida pairou em minha mente: como se faz dosagem alcoólica em cadáveres? A resposta é simples: por meio de uma amostra sanguínea analisada em cromatografia gasosa. Mas será que a concentração de álcool no sangue de um cadáver não pode estar aumentada em função da fermentação alcoólica bacteriana?

Se isso de fato ocorrer, como avaliar se um indivíduo estava ou não sob efeito do álcool quando do evento morte? Calma lá: uma coisa é definir se havia álcool no sangue da pessoa, outra é definir se ela estava sob efeito do álcool. Claro, entretanto a presença de etanol em amostras de tecido humano coletadas durante a necrópsia é geralmente considerada um indicativo de consumo de bebida alcoólica ante mortem. Mas será que o processo fermentativo gera álcool no sangue de cadáveres?

Uma rápida busca no Web of Science me respondeu que sim. Num artigo de 1993, Canfield e colaboradores relataram de 975 amostras de sangue oriundas de cadáveres de acidentes aéreos, 79 excediam 40mg/dl de álcool no sangue. Destes, 21 eram de origem endógena (fermentação alcoólica post mortem). Isso foi determinado por meio da análise da distribuição etílica na urina, no humor vítreo e em outros tecidos.

Os mesmos autores ainda relatam que em dois casos a produção de álcool post mortem excedeu os 150mg/dl. Isso equivale a 1,5g/l ou 0,15% (lembre das informações deste post em que o legalmente tolerado é de 0,02%). Em outras palavras, é possível que um cadáver seja tido como alcoolizado quando de fato não estava.

Há alguns métodos para detectar a presença de bactérias no sangue (com base no bom e velho PCR, já explorado neste blog – vide Kupfer et al. 1999) ou de inibir a fermentação após a coleta (vide Amick & Habben 1997). No entanto, estes métodos não resolvem o problema: o primeiro apenas aponta que aquele etanol encontrado no sangue pode não ter sido ingerido e o segundo impede a fermentação após a coleta, não antes.

Fato é que a interpretação da presença de álcool em amostras sanguíneas coletadas de cadáver nem sempre é de fácil interpretação. Nem sempre o de cujus tomou algumas biritas antes do óbito.

Artigos citados:

Amick, G.D. & Habben, K.H. 1997. Inhibition of ethanol production by Saccharomyces cerevisiae in human blood by sodium fluoride. Journal of Forensic Sciences 42(4): 690-692.

Canfield et al. 1993. Postmortem alcohol production in fatal aircraft accidents. Journal of forensic Sciences 38(4): 914-917.

Kupfer et al. 1999. PCR-based identification of postmortem microbial contaminants – A preliminary study. Journal of Forensic Sciences 44(3): 592-596.