Crise de Identidade e o Transplante de Mão

Dentre os avanços que os últimos tempos têm proporcionado, aqueles relacionados à medicina estão entre os mais repercutidos. Não que novas tecnologias de outras áreas não têm sido discutidas, mas os achados na área de biológicas trazem a tona alguns limiares de conceitos enraizados há muito tempo.
A exemplo, podemos citar as repercussões no campo da ética. A simples possibilidade de se criar um clone humano já gerou um debate bastante acalourado entre os membros da “Torre de Marfim” e ou praticistas. Antes disso, a fertilização in vitro já havia provocado certo furor; da mesma forma que o descarte de óvulos fecundados e a terapia gênica.
O mais interessante nestes episódios é que as preocupações acerca da aplicação dessas novas tecnologias respingaram em áreas cuja relação com a medicina não era clara. Isso ocorreu quando os transplantes de órgãos tornou-se viável. Questionava-se a identidade daquele que recebe um órgão: é o mesmo de outrora ou novo indivíduo? Claro que, na prática, o transplante de órgãos internos não altera a identidade de um indivíduo. Mas e se esse órgão fosse essencial para um processo de identificação?
Isso aconteceu em meados de 2000, na França. O francês Denis Chatelier, então com 33 anos, foi o primeiro homem a receber o transplante duplo de mãos. Chatelier perdeu os membros durante um acidente enquanto confeccionava fogos de artifício caseiros, em 1996. Quatro anos mais tarde, se submeteu a uma cirurgia dirigida pelo Dr. Jean-Michel Dubernand, em Lyon, e recebeu as mãos de um cadáver. Após a recuperação, Denis Chatelier se emocionou ao ver pêlos e unhas voltarem a crescer e recuperou a mobilidade dos dedos.

Denis Chatelier após a cirurgia, em 2000.
O potencial é inquestionavelmente fantástico. Devolver as mãos, tão essenciais, a um amputado deveria, por si só, justificar qualquer apontamento em contrário. Entretanto, avaliando sob aspectos talvez menos ortodoxos, a identificação de um indivíduo que recebeu o transplante fica, no mínimo, comprometida. Com a popularização desse procedimento, em especial pelo sucesso das cirurgias conduzidas pelo espanhol Pedro Cavadas, mais e mais pessoas passam a ter impressões digito-papilares de outras. Em que pese a unicidade, nada mudou, vez que aquele que cedeu as mãos perdeu a condição de pessoa (são atuais cadáveres), mas e quanto aos registros civis e criminais? E se o doador tiver deixado suas impressões em um eventual local de crime?
Não tenho as respostas a essas e outras perguntas que cercam essa temática. Penso, apenas, que devemos nos atentar a questões do gênero e discutir a consequência destas tecnologias com menos paixão e mais prática.