Da Curetagem à Impunidade

Em levantamento realizado pelo Instituto do Coração (InCor), da Universidade de São Paulo, a curetagem foi a cirurgia mais realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entre 1995 e 2007 foram realizadas 3,1 milhões de curetagens, o que equivale a cerca de mais de 653 curetagens por dia no período.
A curetagem é um procedimento médico cujo principal objetivo é a remoção de restos plancentários ou resíduos de endométrio mediante o uso de um instrumento denominado cureta. É um procedimento comumente necessário após um aborto (apesar de ser utilizado em outras ocasiões, em menor frequência).
A notícia do número de curetagens realizadas no Brasil circulou pelos principais veículos de mídia (jornal O Estado de São Paulo, revista Veja, portal G1, canal GloboNews, entre outros). Não vi, entretanto, niguém se pronunciar quanto ao significado deste número. Como perito, venho trazer um viés pericial para a discussão e esse viés me assustou.
É sabido que a curetagem é comumente realizada após um aborto (legal ou ilegal). Sabemos que, nacionalmente, esse procedimento é realizado pelos SUS cerca de 650 vezes por dia. O que não sabemos é: quantas dessas 650 ocorrências diárias são investigadas criminalmente? Não estou aqui dizendo que toda curetagem realizada pelo SUS foi necessária após abortos ilegais. Mas certamente um boa parcela se deu por conta disso.
Mas como investigar esses casos? Inicialmente, tomando o depoimento da paciente e daqueles que a acompanham. Secundariamente, coletando informações de pessoas que convivam com a paciente: amigos, vizinhos, familiares, namorado(!)… Paralelamente, a perícia já poderia ir se preparando, coletando uma amostra biológica consentida da vítima ou se atendo ao material biológicos originários da paciente deixados nos instrumentos (se é uma amostra legal ou não, há discussão jurídica…).
Pericialmente, o próximo passo seria confrontar geneticamente a vítima com fetos encontrados nas redondezas. Não é pouco frequente a notícia de que um feto foi encontrado jogado em terrenos baldios, lixões ou mesmo em via pública. Uma alternativa seria a criação de um banco de dados genético de fetos de forma que para toda curetagem, o DNA da vítima seria confrontado com tal banco de dados. É certo que, ainda que eventualmente, seriam encontrados alguns pares mãe-filho entre paciente-feto.
Voltando a pergunta: quantas vezes uma curetagem é investigada? A resposta é muito próxima do zero. Isso é quase como um patrocínio do Estado na prática de um crime. A necessidade de uma curetagem após um aborto ilegal é, sem sombra de dúvida, um indício (lembra do conceito de indício: “Circunstância conhecida e provada que, tento relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias” – art. 235 do CPP). O material extraído do útero pelo procedimento são vestígios. Comprovada sua relação com o feto, passam a evidência. Ou seja, diante de uma curetagem a autoridade policial têm todos os elementos para uma investigação criminal. Por que não se procede?
Que fique claro que esta não é uma discussão sobre a legalidade ou não do aborto. A lei é clara: aborto é crime, salvo em certas circunstâncias (nos casos de estupro, quando a gravidez representa risco de vida para a mãe ou mediante autorização judicial). A questão é por que não se investiga a curetagem em todo e qualquer estabelecimento médico? É evidente que o procedimento dever ser realizado quando necessário, especialmente quando sua abstenção coloca em risco a vida da paciente. Mas valeria, no mínimo, a investigação.