Preservação de local de crime: uma piada pronta

Parece óbvio, mas não é. Quando um evento de interesse delituoso acontece e a demanda por perícia existe, deveria ser evidente às pessoas que o local (ou a “cena”, com alguns preferem) deve ser preservado. Isso porque é necessário garantir a manutenção do estado das coisas até que sejam analisadas pelos peritos criminais. O bom senso nos leva a isso, a lei coaduna com isso (vide inciso I do artigo 6o e o artigo 169 do CPP), mas na prática a teoria é outra.

Já mencionei em posts anteriores a importância da preservação de local de crime, mas nunca é demais enfatizar. Claro que a ausência de um bom isolamento e preservação prejudica a perícia, daí a ênfase no assunto. Porém, a prática pericial é uma caixa de surpresas. Principalmente quando se trabalha em plantão de atendimento a ocorrências, circunstância que altera nossas percepções a ponto de sermos capazes de rir de uma tragédia.

As situações vividas por um perito criminal marcam sua vida: muitas pelas chagas da violência ali materializada, mas algumas pela falta de noção das pessoas que orbitam esse mundo, sejam os meliantes, sejam os agentes públicos. Como já abordei em um post de 2011, não é porque trabalhamos na desgraça que devemos nos privar de nos divertir, ainda que façamos nosso trabalho com respeito, esmero, perseverança e compaixão. É um alivio cômico que nos acomete quando nos deparamos diante de situações

E foi uma boa gargalhada a consequência do relato que li de uma colega. Em um plantão recente, uma Perita Criminal foi acionada para um exame pericial em um acidente de trânsito. A informação dava conta de que uma motocicleta com pneus murcho trafegava por uma via em curva à esquerda em declive, quando perdeu o controle, derivou à direita e se chocou contra um poste de iluminação. O motociclista veio à óbito no local e, portanto, quatro elementos principais haviam de ser analisados: a via, o veículo, a vítima e o poste.

Pois bem, nobre leitor, apresento abaixo uma imagem do local. A visada fotográfica foi tomada no sentido de tráfego da motocicleta antes do choque. Nela se vê parte da via, o poste, o cadáver (coberto por manta refletiva) e a motocicleta. Encontre o erro.

2018-05-03-PHOTO-00000041

Encontrou? Alguns devem ter se atentado a posição da motocicleta (em pé) e questionando qual a probabilidade dela, após o embate, ter se imobilizado literalmente estacionada na via parelela ao fato. É verdade, muito pouco provável. Logo, essa não é a posição e situação em que o veículo se imobilizou. Mas não é esse o fato gerador da piada pronta. Vou colocar outra fotografia para dar uma dica:

2018-05-03-PHOTO-00000036

Viu agora? Não? Bem, então terei de desenhar explicar. Ou melhor, vou colocar aqui o relato da colega e sua indignação peculiar ao se deparar com o fato:

Têm umas coisas que a gente desacredita, mas quando é plantão pós feriado, segundo dia de inferno astral e a perita é a Barbara, tudo conspira para que absurdos aconteçam! Lá vem a história:
Caiu um local de acidente com vítima fatal para começar bem o dia, laudinho chato para fazer, corpitcho para virar, do jeitinho que eu gosto…
Chegamos ao local, fui conversar com a equipe de preservação (basicamente, a equipe responsável por manter a integridade do local dos fatos para que o trabalho da perícia seja bem feito), perguntar o que tinha acontecido e me foi passado o seguinte: segundo testemunhas o piloto da moto tava com o pneu da moto murcho, veio meio sem controle descendo a rua, bateu no poste e móórreu! Choque contra poste clássico, tirando o pneu murcho!
Então, vai lá esta perita que vos fala analisar o poste, verificar os vestígios deixados e bla bla bla. Olho para o Zé, o fótografo azarado do dia que caiu comigo, e falo: Zé, pintaram o poste????? Zé PINTARAM o poste!!! Viro para os polícia, PINTARAM o poste?? Como assim pintaram o poste???? E tipo, acabaram de pintar o poste, o funcionário da prefeitura tava pintando o poste seguinte!!!! Polícia, como assim você deixou pintarem (a porra d)o poste???????????????????????????????????????? (Fotografia 1)
E assim começou mais um plantão zicado com este exemplo de preservação de local…
PS: Pintaram até a faixa de isolamento… #HistoriasDeUmaPerita

Pois é. Isso mesmo. Havia uma equipe policial “preservando” o local, uma faixa de isolamento (ainda que isolasse malemá) e ainda assim um funcionário da prefeitura local pintou o poste instantes antes da perícia. Pelo Princípio de Locard, vestígios da motocicleta (fragmentos de tinta, atritamentos metálicos, etc) estariam presentes no poste e coadunariam com a hipótese da dinâmica apresentada pelas testemunhas. Mas pintaram o poste logo após o evento (inclusive a faixa de isolamento!). Veja a fotografia do funcionario da prefeitura pintando o poste seguinte e, ao fundo, o famigerado poste do evento:

2018-05-03-PHOTO-00000039

O coitado do funcionário não deve ter sido orientado pelo superior sobre como agir numa situação dessas, de forma que ele seguiu à risca as ordens. Mas o policial responsável pela preservação não ter o orientado ou mesmo impedido a “remoção” dos vestígios, ahh isso não é razoável. #BenvindoAoMundoDeMalboro