As rodovias são as principais rotas de escoamento da produção brasileira. É a via de abastecimento de mercados e cidades. Utilizando estradas de rodagem, o meio para o transporte desses bens não poderia ser outro senão o caminhão. Então, parando os caminhões, cessão as entregas, as reposições de produtos, a distribuição de mercadorias, o escoamento da produção. Os caminhoneiros sabiam disso. Desagradaram os caminhoneiros com a política de preços do diesel. Os caminhoneiros pararam as estradas. Claro que o que desagradou a categoria foi a tributação excessiva que resultou em altos preços do combustível, o que nos faz lembrar que o aumento da taxação talvez tenha ultrapassado o ponto de inflexão da chamada curva de Laffer.
Em poucos dias, os efeitos do desabastecimento foram vistos, gerando cenários que lembram filmes e séries pós-apocalípticos, como Mad Max 2 e The Walking Dead. Multidões foram a mercados para estocar comida, e a consequência foi aquilo que prevê a Lei da oferta e da demanda: quem tem o produto em cenário de alta demanda, cobra mais caro por ele. O mesmo aconteceu com combustíveis: em falta nos postos, as filas eram medidas em quilômetros.
O que há de relevante criminalmente nisso? Muita coisa! Primeiro que a própria Polícia Federal já instaurou quase 50 inquéritos policiais para a investigação de supostos crimes relacionados à greve dos caminhoneiros (crimes contra a organização do trabalho, contra a paz pública e contra a segurança dos meios de transporte, por exemplo). Segundo, que há a hipótese de lockout, prática vedada no artigo 17 da Lei de Greve.
Mas não é isso que interessa diretamente ao que se pretende discutir aqui. O mais impressionante é que a escassez de produto cria um frenesi nas pessoas que, por desespero, buscam pelos remanescentes a qualquer preço. No caso dos combustíveis, esgotados em muitos postos, quem tem gasolina vende por preços exorbitantes justificando o valor pela Lei da Oferta e da Procura. Preços exorbitantes interessam aos vendedores e, portanto, interessa que tenham mais produto para a venda. Alguns comentários circularam pelas redes sociais dando conta de que os postos de combustível que ainda possuíam gasolina estariam “fazendo render” com a adição de adulterantes.
Adulterar combustível é crime (vide art. 1º, inciso I da Lei 8.176/91), mas a materialidade constatada pela perícia nem sempre é simples. Quando o “adulterante” é água, então a constatação é fácil: afinal, gasolina e água não se misturam e, portanto, bastaria coletar uma amostra e esperar que as fases se separassem por uma questão de polaridade (a água é polar, enquanto a gasolina é apolar). Esse, porém, não costuma ser o método de escolha dos meliantes, já que o veículo apresenta falhas cedo o bastante para que o consumidor relacione a falha ao último posto em que abasteceu.
Mais comum é a adulteração utilizando líquidos combustíveis que não deixem vestígios tão imediatos, como etanol, diesel, querosene e outros solventes (aguarrás, benzina, SPB, etc). Muitas vezes o consumidor só percebe que o combustível estava adulterado quando os danos ao motor já são evidentes, quando já é tarde demais.
Quando diesel é acrescido à gasolina, a mistura resultante é turva e, assim, muito diferente da gasolina comercializada. A turbidez deve ser interpretada como vestígio de adulteração, sendo provável o uso de diesel. Mas a confirmação do adulterante vai depender de exames complementares.
No caso da adulteração por etanol, o exame não é dos mais complicados e pode até ser objeto de ensino de ciências. À gasolina vendida no Brasil é legalmente adicionado etanol em até 27% em volume (apesar de a ANP aceitar margem de erro de 1%), mas volumes superiores a isso não apenas são ilegais como acarretam em perda significativa do desempenho do veículo, falhas na ignição e até mesmo corrosão no sistema de injeção eletrônica.
Num exame simples, é possível determinar a porcentagem em volume de etanol na gasolina. Basta utilizar o conhecido teste da proveta. O método consiste na mistura 50ml da amostra de gasolina cuja fração de etanol é desconhecida com 50ml de uma solução aquosa de cloreto de sódio 10% (equivalente a 100g de NaCl em 1l de água) em uma proveta de 100ml. É possível fazer o teste com água, ao invés da solução de NaCl, mas ANP sugere o uso da solução. A mistura deve ser feita por inversão, tapando a boca da proveta e invertendo-a por ao menos 10 vezes. Em seguida, é necessário deixar a mistura na proveta descansar por 10-15min.
A água é mais densa que a gasolina e, portanto, permanecerá abaixo na proveta. A molécula de etanol apresenta uma parte polar, caracterizada pelo grupo –OH. Quando a gasolina é misturada à solução aquosa, o etanol é atraído pela polaridade da água e nela se mistura na fase inferior da proveta, deixando a gasolina, menos densa, na parte superior.
Se a gasolina não tivesse etanol, então o limite entre a solução e a gasolina seria exatamente na marca dos 50ml na proveta. Com a adição legal de até 27% de etanol na gasolina, o limite entre as fases deve ficar entre 50ml (sem etanol na gasolina) e 63,5ml (quando a gasolina possuir 27% de etanol).
O cálculo da porcentagem de etanol na gasolina é relativamente simples diante do resultado do teste. Basta verificar o limite entre as fases na proveta, subtrair desse 50 desse valor e multiplicar o resultado por dois. Por exemplo: feito o procedimento, o limite entre as fases está em 67ml; subtraindo 50 de 67, teremos 17; multiplicando 17 por dois, temos 34% de etanol na gasolina testada.

Outros solventes já são mais difíceis de serem detectados, exigindo uma abordagem laboratorial mais criteriosa, como o uso de cromatografia gasosa.
Mas frente à crise de abastecimento, é pouco provável que postos de combustível estivessem adulterando a gasolina com etanol, já que esse produto também esteve em falta. Entretanto, se a disponibilidade de solventes orgânicos fosse presente, é possível que o crime de adulteração de combustível tenha sido praticado Brasil a fora.
Saiba mais:
ANP – Dicas para o consumidor – Qualidade da gasolina
Mundo Educação – Determinação do teor de álcool na gasolina
Manual do Mundo – Como fazer o teste da gasolina adulterada (experiência de Química)