Homicídio é o nome dado à conduta de uma pessoa matar outra pessoa. É uma conduta prevista como crime no ordenamento penal de quase todos os países, já que é um crime capital. O homicídio ceifa o bem mais essencial de qualquer um: a vida. Por isso se diz que é um crime que possui “a primazia entre os crimes mais graves”.
Não queremos aqui escrever uma Tese Sobre um Homicídio, mas é um homicídio que estabelece o mote de um filme argentino que leva esse mesmo nome, de 2013. Conta a história de um professor de direito penal, Roberto Bermudez (interpretado por Ricardo Darín), que ministra um seminário sobre casos práticos, muito concorrido em uma pós-graduação. Um dos alunos matriculados é Gonzalo Ruiz (interpretado por Alberto Ammann), o filho de um velho amigo e que supostamente admira muito o professor.
Durante uma das aulas, o corpo de uma mulher aparece no estacionamento da universidade, o que desperta o faro de Roberto em investigar o caso. Daí em diante o filme vira um duelo psicoemocional entre Roberto e Gonzales, de forma que o primeiro está tão certo de que o segundo é o autor do crime que usa de seus dotes de boxeador para “fazer justiça com as próprias mãos” no final do filme.
Ok, o filme tem muito mais detalhes que merecem atenção. Mas avisamos: haverá spoilers a partir daqui. Afinal, não dá para falar do que é pericialmente relevante sem apontar trechos do filme, não é mesmo? Antes disso, há de se reconhecer que o filme é bom. Não é ótimo, nem excelente. Bom. “Bom” quer dizer que vale a pena assistir, mas não vai superar as expectativas de um espectador mais exigente. Mas vamos aos comentos analisáveis:
Logo que o corpo é encontrado (perto dos 15min de filme), há ao menos quatro situações que chamam a atenção:
- O professor Roberto, um advogado, diferente de qualquer outra pessoa ao redor entra no local do crime, circula o corpo e permanece ali como se fosse pessoa relacionada à polícia ou à perícia. É notável a cena principalmente porque instantes antes o delegado diz “Não mexam no corpo até a chegada dos peritos. Não deixe nenhum curioso furar o cerco”, mas logo depois deixa Roberto entrar no perímetro isolado (????);
- Encontram um bilhete no local e o delegado vai direto mostrar para Roberto, como se fosse da equipe de investigação;
- Mesmo antes da perícia, o delegado já concluiu que a vítima foi “Espancada, estuprada, retalhada e assassinada. O pacote completinho!”;
- Alguns policiais fardados caminham aleatoriamente próximo ao corpo, sem qualquer procedimento de aproximação e manutenção do estado das coisas para a perícia.
Em um caso real, esses pontos são extremamente importantes, pois representam a violação do palco onde a perícia se inicia. A presença de pessoas estranhas à investigação eiva os vestígios, comprometendo sua idoneidade. Policiais se movimentando aleatoriamente, sem qualquer objetivo também podem macular os elementos materiais no local do crime. As conclusões precipitadas de um delegado ou de uma equipe de investigação não apenas pode provocar um viés contextual, como levar à linhas investigativas sem respaldo técnico.
Lá pelos 22min de filme, o delegado entrega um “laudo preliminar” ao advogado Roberto, no qual consta “morte por asfixia, com hematomas e cortes por todo o corpo” e que formol teria sido injetado no corpo. No Brasil, não existe laudo preliminar sobre os exames necroscópicos, mas “vá bene”, o crime aconteceu na Argentina. Há um porém: se o corpo foi injetado com formol, no local já teriam suspeitado pelo forte odor da substância. A não ser que estivesse a temperatura baixa o bastante para que não volatilizasse o suficiente, o que é pouco provável já que o ponto de ebulição do formaldeído é perto dos -20oC e o odor tem limiar baixo, causando irritação aos olhos e mucosas respiratórias. Teriam, ao menos, desconfiado de um agente irritante.
Também mostram uma luva de látex no local, da qual presumiram que era do suspeito por não terem encontrado nenhuma impressão digital. Duas questões são importantes: primeiro que não é muito fácil vincular uma luva descartável próximo a um corpo fresco ao autor do crime. Isso porque paramédicos e socorristas, que chegam antes da polícia no local, nem sempre são cuidadosos a ponto de não deixarem suas luvas por ali. No caso em questão, não se fala em socorrismo prévio, então imaginamos que tenha sido licença poética do roteirista. Segundo: luvas de látex podem ser ótimas fontes de DNA de contato de quem as vestiu! Mas não, esta não foi uma abordagem dos peritos designados para o caso do filme… lamentavelmente.
O suposto laudo preliminar também apontava que a asfixia por constrição do pescoço ocorreu por “um lenço ao alguma coisa assim”, segundo o delegado. Seria, portanto, na modalidade de estrangulamento (quando há um laço, mas a força de constrição é distinta do peso do corpo da vítima). Mas na cena seguinte, no necrotério, Roberto olha para o pescoço da vítima e presume que a asfixia por constrição do pescoço teria deixado marcas da corrente que ela usava quando o corpo foi encontrado. Porém, ao evidenciar o pescoço, a câmera revela uma equimose na sua porção direita, o que seria mais compatível com uma esganadura do tipo “mata-leão” (presumindo que há equimose correspondente na porção esquerda do pescoço, o que não é mostrado no filme), não com um estrangulamento que deixaria outras marcas (como um ou mais sulcos).
A falta de marcas da corrente faz Roberto presumir que o autor do crime teria colocado a corrente com o pingente de borboleta depois da vítima morta. Desconsidera o que o próprio médico comenta (sobre a possibilidade de as marcas terem desaparecido entre o fato e o exame) ou que uma corrente relativamente frouxa pode não estar no caminho do membro que asfixiou a vítima. Pior: ele furta a corrente com o pingente, do necrotério. Ninguém se dá conta ou, se dão, nada comentam ao longo do filme.
Existem alguns pontos em que o roteirista duvida da capacidade do seu público. Num determinado trecho, Roberto entrega à Laura, irmã próxima da vítima, a corrente e o pingente. Em ato contínuo, afirma que era da vítima. Mas se Laura era próxima à irmã, saberia se a corrente e o pingente eram ou não da vítima. Não é mesmo?
Outra cena: Roberto vê o punhal-abridor-de-cartas nas mãos de Gonzales na balada. Em seguida, Roberto nocauteia Gonzales e vai preso. Gonzales perde a consciência e é internado no hospital. Em uma das últimas cenas, o punhal aparece na fornalha da balada, sugerindo que de fato o artefato estava em posse de Gonzales. Mas como Gonzales teria colocado o punhal na fornalha se ele foi nocauteado e levado ao hospital?
Há minúcias técnicas no filme que também deixaram de ser exploradas pericialmente. Não vamos explorar todas aqui, mas além das já apontadas, poderiam ter apresentado o resultado de um exame sexológico do cadáver, o que apontaria se de fato foi a vítima estuprada. A coleta de material vaginal também ajudaria na elucidação do caso, já que o confronto deste, com o DNA de contato da luva e com amostras do suspeito (Gonzales) traria relevante materialidade à Tese Sobre um Homicídio!