Resolução SSP 102/18: um avanço à resolução criminal

Na data de 3 de outubro de 2018 a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP/SP), em conjunto com a Superintendência de Polícia Técnico Científica (SPTC), deu um passo importantíssimo para o desenvolvimento de uma Polícia Científica paulista mais ativa, com a possibilidade de apresentação de resultados no longo prazo que, sem dúvida, fortalecerá o trabalho da polícia como um todo, da justiça do Estado de São Paulo e, provavelmente, do Brasil.

A publicação da Resolução SSP 102/2018 de São Paulo normatizou os procedimentos de coleta de material biológico para fins de obtenção e, mais importante, confronto de perfis genéticos, atualizando pontos que eram controversos na legislação vigente, a Resolução SSP/SP 194/99, que foi revogada pela atual normativa. Como exemplo destes pontos, podemos citar a coleta de material biológico de cadáveres encontrados em local de crime, efetuada por peritos criminais. A resolução anterior apontava em seu artigo 5° o que segue:

Artigo 5º – É competência exclusiva de Médico legista a coleta de material biológico para fins de identificação de pessoas vivas ou cadáveres, nos termos desta Portaria.

Parágrafo Único – A coleta de material biológico em pessoas vivas será feita somente em locais apropriados e com o expresso consentimento destas.” (SSP/SP 194/99).

O problema aqui é que, na prática, os peritos criminais de local de crime ao coletarem material biológico a partir de vestígios para fins de obtenção de perfis de criminosos, esbarravam na necessidade de material biológico que permitisse a exclusão de eventuais perfis genéticos das vítimas, em especial em casos de crimes contra a pessoa. Ao coletarem material do cadáver, corriam o risco de ter essas amostras questionadas, por estarem aparentemente em desacordo com o que normatizava a resolução. Um argumento que foi constantemente utilizado para justificar a coleta do material dos cadáveres para sua exclusão era de que o objetivo não era a sua identificação, mas a exclusão daquele perfil genético no confronto com outros perfis eventualmente obtidos dos vestígios de locais de crime. Os peritos criminais que adotaram estes procedimentos o fizeram por própria conta e risco; alguns, de fato, tiveram que dar explicações aos órgãos corregedores.

Adicionando mais pimenta a esse molho, a quantidade de coletas de material biológico para esta finalidade aumentou exponencialmente nos últimos dois anos. Os peritos criminais paulistas munidos do conhecimento das modernas capacidades dos exames de DNA, dentre elas a sensibilidade crescente dos protocolos laboratoriais, possibilitando a coleta de DNA de contato – ou “touch DNA” (Aditya, et. al. 2011), têm coletado mais amostras de local de crime, com finalidade exclusiva de levantamento de perfis genéticos. De fato, tal tecnologia é tão poderosa quanto as impressões digitais, além de ser mais versátil. As impressões digitais encontradas em local de crime necessitam se apresentar com qualidade de detalhes, caso contrário, não permitem confronto. Nos casos de baixa qualidade, a tecnologia atual para obtenção de material genético permite que essas impressões digitais sejam úteis para a investigação, podendo ser também plataformas de extração de DNA (Subhani, et.al. 2018).

O maior trunfo das impressões digitais é a existência de um consistente banco de dados, que pode ser inquirido gerando resultados, os famosos “matches” ou correspondências entre impressões digitais questionadas e aquelas presentes na memória do banco. O Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD) da Polícia Civil Bandeirante tem apresentado resultados robustos neste quesito. Recentemente, um balancete da quantidade de casos solucionados com uso do AFIS (o algoritmo de busca do banco de dados de impressões digitais) liberado pelo diretor daquele instituto revelou a crescente importância desta ferramenta. Diversos casos tiveram suas investigações bem direcionadas graças ao trabalho de excelência de peritos criminais e de papiloscopistas policiais, que coletaram estes vestígios em locais de crime de diversas naturezas, resultando no apontamento de suspeitos dos delitos. Como exemplo, podemos citar o caso do sequestro da sogra do empresário Bernie Ecclestone, ocorrido em 2016, quando papiloscopistas e peritos criminais do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) encontraram um fragmento de impressão digital na porção interna de uma das maçanetas do veículo utilizado pelos sequestradores, que confrontado com o banco de dados, resultou na identificação de um deles.

A importância de um banco de dados de perfis genéticos consistente e robusto não pode ser mais enfatizada, se não ao observarmos os resultados positivos que esta modalidade de inteligência policial traz na solução de casos de violência sexual. Nestes casos, muitas vezes o que temos nos locais de crime é somente o cadáver da vítima, sem campo de pesquisa por impressões digitais de suspeitos. As técnicas para obtenção de material biológico nestes casos são as mais diversas e amplas, desde coleta das vestes da vítima ou de suspeitos (Ogawa et.al. 2017) até esfregaços – ou suabes – da pele da vítima. No entanto, sem um banco de dados de perfis genéticos, depende-se ainda do apontamento destes suspeitos, o que nem sempre é fácil tendo em vista o modus operandi deste tipo de criminosos – em geral eles não tem relação alguma com a vítima, dificultando as investigações, à guisa do que ocorre nos crimes de latrocínio. Alias, é importante pontuar que, em geral, há muita reincidência nestes – e em outros muitos – casos, mas nos crimes sexuais, em especial, os agressores são compulsivos e não param até “serem parados”. Para deixar o leitor de cabelo em pé, podemos citar como exemplo de caso para medirmos a importância de termos um banco de dados consistente, o caso de Chester Turner ocorrido nos Estados Unidos da América.

Chester Turner foi preso mais de 21 vezes ao longo de 15 anos, sem nunca ter praticado um crime que permitisse a coleta de seu perfil genético, de acordo com a legislação do Estado onde cumpriu pena. Ele acabou sendo preso por estupro e teve seu perfil genético obtido e confrontado com o banco de dados americano, gerando coincidências com vestígios de 15 casos de estupro e homicídio de mulheres. A primeira delas teria sido morta menos de dois meses após a primeira vez que ele foi preso. Piora! Outro homem ficou preso durante 11 anos acusado erroneamente e sem provas pela morte de algumas delas. Tivesse o perfil genético de Turner sido coletado desde a primeira prisão, talvez 14 mulheres não tivessem perdido a vida nas mãos daquele homem. Há relatos de casos semelhantes aqui no Brasil, revelados por uma força tarefa efetuada no Distrito Federal, antes mesmo da criação do banco de dados nacional. Em São Paulo, podemos citar o caso de Vicente Alberto Victorno. Vicente havia sido preso por roubo e estupro. Em 2014 sua pena evoluiu para o regime semi-aberto. Desde então, Vicente estuprou e roubou mais de 8 mulheres. Somente em 2016, quando ele foi preso e reconhecido por algumas de suas vítimas, ele teve seu material genético coletado. Seu perfil foi coincidente com os perfis genéticos obtidos a partir de todas as suas vítimas. Caso seu material genético tivesse sido coletado na primeira prisão, talvez se evitasse que ao menos mais sete mulheres tivessem sido estupradas e violentadas.

Um outro exemplo: um homicídio ocorrido em 2015, no qual uma balaclava de lã (touca) foi encontrada próximo ao local onde estava a vítima. A balaclava foi coletada pelo perito criminal que atendeu o local e enviada ao laboratório de DNA, onde obtiveram um perfil masculino, diferente do perfil da vítima. As investigações correram por três anos e somente em julho deste ano (2018) um suspeito foi finalmente encontrado. A autoridade responsável pelas investigações solicitou autorização judicial para cumprir mandado de busca na casa onde o suspeito estava, com objetivo claro de coleta de objetos que poderiam conter material genético do suspeito, para uso no confronto com o perfil que se encontrava no banco de dados estadual. O mandado foi autorizado e cumprido com acompanhamento de peritos do DHPP, que coletaram escovas de dentes de propriedade do suspeito, a partir das quais se obteve um perfil coincidente com aquele encontrado na balaclava.

Pois bem, a SPTC de São Paulo é signatária da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG) e tem constituído banco próprio de perfis genéticos (Resolução SSP/SP 129/10). Conforme último relatório da RIBPG, São Paulo é o maior contribuinte para o crescimento do banco nacional de perfis genéticos. No entanto, até o momento, grande parte dos perfis genéticos que eram inseridos neste sistema eram perfis de vestígios encontrados em locais de crime.

Daí o fechamento deste artigo. A normativa recentemente publicada permite que peritos criminais coletem material para composição do banco de dados tanto de cadáveres como de vivos, nos casos destes serem suspeitos da prática de crimes hediondos, mesmo que compulsoriamente, em ambiente prisional ou em delegacias. Isto vai sem sombra de dúvidas aumentar muito a quantidade de perfis genéticos de prisioneiros e de suspeitos no banco de dados. Por quê? Principalmente porque médicos legistas não podem coletar material no interior de estabelecimentos prisionais conforme normativa do CFM 1635/2002. Agora, peritos criminais ou funcionários treinados podem efetuar estas coletas, em ambientes diversos do IML, obviamente dentro das condições legais estipuladas pela resolução e pela legislação em vigor. Ademais, a normativa também permite que os peritos passem a coletar material biológico dos cadáveres em local, tirando o fardo de suposta irregularidade de suas costas.

Esta resolução da SSP certamente facilitou a alimentação de nosso banco de dados, o que em longo prazo poderá ser sentido pelos órgãos que combatem o crime. Em termos de comparação, a polícia de Paris (França) tem cerca de 3 milhões de perfis genéticos em seu banco de dados. A polícia britânica (Scotland Yard) tem mais de 5 milhões de perfis, com um sistema que faz buscas parciais (assunto para outro artigo; se quiser saber mais sobre o banco de DNA inglês, consulte Wallace 2006). No Brasil, nosso banco de dados tem cerca de 13 mil perfis genéticos, apresentando um crescimento anual de, em média, 20% (Fonte: Relatório RIBPG 2018).

Não se desanime. Mesmo com essa quantidade relativamente baixa em relação aos países citados, no Brasil temos mais de 500 investigações auxiliadas, sendo São Paulo campeão de coincidências, auxiliando 149 investigações. Imagine essa situação daqui a 5 anos, com o vigor da Resolução SSP/SP 102/2018?

Sem dúvida, o fortalecimento deste banco de dados acarretará primariamente em benefícios para a população, aumentando o poder da investigação criminal e reduzindo a impunidade, tornando a polícia uma instituição de base mais forte para a promoção da justiça.