A ineficiência da lei brasileira

Se dissessem a você que algo geralmente evitável (1) matou mais de 38 mil vítimas no Brasil (2), apenas em 2016? Que, somente no estado de São Paulo, a cada duas horas e meia, uma pessoa morre por conta disso? E que no tempo que você vai levar para ler esse texto, pelo menos uma pessoa vai sofrer ferimentos graves o suficiente para serem incluídos nos registros policiais? (3)

Estamos falando de acidentes de trânsito. Talvez no Brasil o assunto não receba tanta atenção quanto os homicídios (cujos números ultrapassaram 60 mil nos últimos levantamentos divulgados) (2), por ser um dos países em que a violência interpessoal voluntária mata mais do que essa complexa interação entre motorista, veículo, vias e legislações. Mas isso não é motivo para ignorarmos o número absurdo de pessoas que perdem suas vidas; vidas essas que seriam preservadas se tivéssemos algumas coisas em ordem.

Importante ainda entender que estimativas indicam que metade dos acidentes no Brasil são causados pelo consumo excessivo de etanol (4), apesar de nosso país não ser um dos que mais consome bebidas alcoólicas (ou seja, o problema não é a cervejinha do fim de semana; é querer voltar dirigindo depois).

Antes de explicitar o problema, é importante entendermos como as leis funcionam, ou como elas têm a intenção de funcionar, para desmotivar um indivíduo a cometer um crime. As leis funcionam através de dissuasão geral (leis para desmotivar as pessoas de iniciarem comportamentos perigosos e/ou indesejados) ou específica (punição direta sobre os infratores). Para esse último grupo, três itens são considerados cruciais para o sucesso da lei (ou seja, para que o comportamento infrator não seja mais proveitoso do que seguir a lei): o impacto das punições, a certeza de que ao cometer a infração haverá punição e a rapidez na aplicação da lei. Da forma como se apresenta, a lei de trânsito brasileira sofre de falhas graves nos dois primeiros itens. Há relatos suficientes para acreditar que não estamos muito bem no terceiro também (5).

Pois bem, vamos à lei. Para o indivíduo que não bebeu, a solução é simples: se ele for parado em uma blitz e soprar o etilômetro, o resultado será negativo e ele vai para casa sem punição; caso se recuse, paga multa de R$ 2.934,70 e tem a carteira suspensa (artigo 165-A).

Agora, para aquele que exagerou na cerveja, e não foi prudente em separar um dinheiro para voltar para casa de transporte público, ou pedindo uma carona, a coisa fica mais complicada. Será que ele arrisca soprar o etilômetro, e torce para ter metabolizado o álcool, ou pelo menos estar com uma concentração baixa e receber a mesma punição da recusa (artigo 165)? E se ele tiver calculado errado, e a concentração estiver muito alta (artigo 306)? Tentar a sorte vale o risco de ir preso por até três anos e ter a carteira cancelada?

Para responder essa pergunta, avaliamos as possibilidades de cada resultado, estimando em 5% a chance de o indivíduo ser dotado de um metabolismo extremamente rápido, e resultar negativo no etilômetro, contra 79,3% de chance de um resultado baixo (com multa, mas sem prisão) e 15,7% de resultado alto (cadeia!!!), segundo bases da DPRF. Tudo isso pesando contra não soprar, e responder pela recusa.

Resultado: Soprar o etilômetro “custa” em média R$ 13.443,24; não soprar custa R$ 5.499,60 (somando a multa e o “custo” de ficar sem a carteira de habilitação por um ano).  A conclusão lógica é clara: Se bebeu, melhor não arriscar a pequena chance de dar negativo e recusar o etilômetro para não levar um prejuízo (quase três vezes maior!!)

Você, sagaz leitor, já deve ter percebido o impacto desse desequilíbrio da lei: quem deveria responder por colocar os outros em risco, dirigindo embriagado e sofrendo uma punição adequada, escapa com uma multa e o inconveniente de ter a carteira suspensa. Nessas horas, o crime compensa….

 

Saiba mais

As referências do texto estão abaixo listadas, mas este post foi baseado no artigo Loaded dice: A game theory analysis of drunk driving laws in Brazil, cujo pdf está disponível neste link.

(1) Gopalakrishnan, S. A Public Health Perspective of Road Traffic Accidents. J Family Med Prim Care. 2012 Jul-Dec; 1(2): 144–150.

(2) DATASUS. Serviço de Informações de Mortalidade – SIM . 2018

(3) Estatística – 3º Trimestre de 2018. Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo. 2018.

(4) de Carvalho Ponce J, Muñoz DR, Andreuccetti G, de Carvalho DG, Leyton V. Alcohol-related traffic accidents with fatal outcomes in the city of Sao Paulo. Accid Anal Prev. 2011 May;43(3):782-7.

(5) Bodas, A. Por que a Justiça Brasileira é lenta?