Imagine que você está caminhando tranquilamente pela rua em uma noite de verão, quando de repente, testemunha um assassinato. Tudo acontece muito rápido. Você se esconde, mas observa tudo atentamente, sem piscar, não tira os olhos da cena nem por um segundo.
Depois de um tempo, você é considerado testemunha ocular e é chamado para reconhecer o suspeito do crime. Será que você seria capaz de reconhecê-lo? Você tem certeza que sim, afinal, aquelas cenas fortes que aconteceram alí, bem na sua frente são difíceis de esquecer.
Segundo o Innocence Project (uma organização americana que usa, entre outros recursos, modernas técnicas forenses para provar a inocência de indivíduos que foram condenados por crimes que não cometeram), cerca de 1 em cada 3 condenações baseadas em depoimentos de testemunhas oculares que puderam ser reavaliadas por meio de exames que não estavam disponíveis na época dos fatos se mostraram falhas, levando inocentes para a cadeia e, consequentemente, deixando livres os verdadeiros culpados.
Mas porque isso acontece? Como as pessoas podem se enganar tanto assim? Isso ocorre basicamente devido a dois fatores: 1) a formação da imagem e 2) a memória do fato.
A formação da imagem no cérebro é um processo complicado que envolve uma série de fenômenos físicos e neurológicos. Além disso a reconstrução de memórias é um mecanismo extremamente complexo e dependente de nossas sensações e experiências acumuladas ao longo da vida.
Vamos voltar ao nosso exemplo do início do texto. Como as condições de luminosidade e a distância poderiam alterar a sua visão? Quando alguém testemunha um crime, em geral, não busca o melhor ângulo de visão, a melhor iluminação… é um evento imprevisto e repleto de emoções.
O olho humano funciona como um complexo instrumento óptico, com um avançado sistema de lentes de vários tipos, focalização automática, pupilas de diâmetro variável e sistemas de balanceamento de luminosidade. Basicamente, em uma pessoa sem nenhum problema de visão o processo de formação da imagem funciona da seguinte maneira: a luz proveniente do objeto que observamos atravessa a córnea e passa pelo cristalino (que possui a forma de uma lente biconvexa) formando uma imagem invertida sobre a retina. Na retina possuímos células fotorreceptoras que são sensíveis à luz e através de processos fotoquímicos pré-processam a imagem antes dela ser enviada ao cérebro pelo nervo óptico.
Agora vamos nos focar nos fotorreceptores presentes na retina. Eles são chamados de cones e bastonetes. Os cones estão presentes nos olhos dos animais que são capazes de reconhecer cores, enquanto os bastonetes, presentes nos olhos de todos os vertebrados, são os responsáveis pela detecção dos níveis de luminosidade. Os bastonetes são centenas de vezes mais sensíveis que os cones e detectam somente tons de preto, cinza e branco.
O ser humano possui dois tipos de visão: a visão escotópica (produzida em baixas condições de luminosidade) e a visão fotópica (produzida quando as condições de luminosidade permitem a distinção de cores). Pensando no nosso caso noturno, vamos considerar o mecanismo de formação da imagem proveniente da visão escotópica. Em condições de pouca luz, os cones presentes nos olhos não são sensibilizados e a imagem é formada quase exclusivamente por bastonetes, sendo uma tarefa árdua o reconhecimento de cores. Além disso, para que a visão escotópica esteja em seu auge é necessária uma adaptação a baixos níveis de luminosidade que, em média, é de cerca de 40 minutos (PIRENNE, 1962) Outro fator importante da visão escotópica é a localização dos bastonetes, pois esses se concentram na periferia da retina, fazendo com que muitas vezes a visão periférica seja mais acurada em condições de obscuridade.
Sendo assim, as imagens transmitidas para o cérebro em baixas condições de luminosidade são pouco precisas e de baixa qualidade. É então que esbarramos em uma outra questão. Quando a imagem passa ao cérebro e ainda precisa ser “interpretada”, muitos fatores podem contribuir para que essa finalização ocorra de forma inacurada. O processamento sempre buscará por registros de pessoas conhecidas (não necessariamente pessoalmente), situações já registradas (vividas ou vistas na ficção), ou pode até mesmo ser induzida por um relato ou questionamentos realizados por outra testemunha, advogado ou agente de segurança pública.
Outro fator relevante no reconhecimento de testemunhas é a questão étnica. Tal efeito é conhecido como “cross-race effect”, em que pessoas de uma etnia, ou grupo social possuem dificuldades em reconhecer traços relevantes em indivíduos de outras origens. Em casos desse tipo, testemunhas oculares não possuem elementos individuais suficientes para reconhecer um suspeito entre outros de um outro grupo e todos eles passam a ser “iguais” perante suas lembranças. Para exemplificar melhor o nosso caso, imagine que você estava passando próximo à saída de um show de rock e tem que reconhecer um entre milhares de homens cabeludos, vestidos de preto com estatura e corporatura média. Ou então, um asiático de cabelos curtos, escuros, olhos castanhos e puxados. A criação de esteriótipos de etnias e grupos sociais é um dos fatores delimitadores para o reconhecimento. Muitas vezes a testemunha acaba por “escolher” um dos suspeitos baseada em características não relacionadas com o crime, como o menos simpático ou o menos bonito, por exemplo (WILSON, HUGENBERG & BERNSTEIN, 2013).
Por fim temos ainda o problema das nossas memórias pessoais. Muitas pessoas acreditam que a nossa memória funciona como uma câmera filmadora que grava um filme que pode ser revisto a qualquer momento. Na verdade, não é isto que acontece. Todas as vezes que nos lembramos de um fato ele é reconstruído, como um quebra-cabeça, e muitas vezes podemos encaixar peças que são provenientes de experiências anteriores ou criadas em determinado momento (LOFTUS, 1980). Algumas pessoas podem inclusive, criar lembranças de fatos que não ocorreram ou alterar a versão do fato observado dependendo das circunstâncias e outros fatores psicológicos (LOFTUS & KETCHAM, 1991).
E agora, voltamos a cena do crime que você supostamente presenciou. Você ainda tem certeza que seria capaz de reconhecer o suspeito sem sombra de dúvida?
Saiba mais
Loftus, E. 1980. Memory, surprising new insights into how we remember and why we forget. Ardsley House Publisher, New York, NY.
Loftus, E. & Ketcham, K. 1991. Witness for the Defense: The Accused, the Eyewitness, and the Expert Who Puts Memory on Trial. St. Martin’s Press, New York, NY.
Pirenne, M. H., 1962. Dark Adaptaion and Night Vision, Chapter 5. In: Davson, H (ed), The Eye, vol 2. Academic Press, London, UK.
Wilson, J. P., Hugenberg, K., & Bernstein, M. J. 2013. The cross‐race effect and eyewitness identification: How to improve recognition and reduce decision errors in eyewitness situations. Social Issues and Policy Review 7: 83-113. http://dx.doi.org/10.1111/j.1751-2409.2012.01044.x