As Provas De Uma História e a História Das Provas

A Cadeia de Custódia da Prova Penal e a Lei Anticrime

A prova penal visa recompor fatos pretéritos para contar a história de um crime, e, com o conhecimento de um delito por parte da autoridade pericial, começa a construção da “história da prova pericial”. A prova técnica, em especial, requer cuidados específicos e procedimentos adequados em seu manuseio, e tudo que ocorrer na história de cada vestígio deve ser registrado e minuciosamente protocolado.

A prova pericial irá transitar por várias mãos, e cada etapa a que esta prova estiver submetida deve ser registrada, controlada e minuciosamente descrita e “datada”. E, com as mudanças realizadas no Código de Processo Penal Brasileiro (CPP), advindas da lei conhecida como “Pacote Anticrime”, ficou claramente definida em lei o que conheceremos como Cadeia de Custódia da Prova.

A Lei 13964/2019, por alguns também conhecida como “Lei Anticrime”, incidiu sobre vários dispositivos legais e efetuou significativas e importantes alterações no CPP, que já estão em vigor desde o dia 23/01/2020.  Esta iniciativa e as alterações verificadas deixou clara a importância e preocupação com a prova penal, em especial na validação e aceitação dos laudos periciais pelos tribunais, os quais estão ainda mais atrelados ao rigor no cumprimento da cadeia de custódia da prova.

 O CPP teve acrescido o artigo 158- A, que descreve:

“Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”

Ou seja, a análise do conteúdo dos laudos e das provas periciais será, definitivamente, precedida pela aceitação destes como elementos de prova, e cada vez mais será discutido e questionado o histórico de manuseio de cada prova material.

O rastreamento do vestígio inicia pela preservação da cena do crime, com a chegada do primeiro profissional autorizado e legalmente responsável por manter a integridade da cena de crime, via de regra, um policial militar ou civil, que por lei ficará encarregado para que se mantenha “o estado das coisas”.

Cabe sabermos o que conceitualmente entende-se por “local de crime”, e entre as melhores definições escolho a oriunda do mestre e Perito Criminal gaúcho Eraldo Rabello, na Revista de Criminalística do RS , n. 7. quando define local do crime como sendo:

“[…] a porção do espaço compreendida num raio que, tendo por origem o ponto no qual é constatado o fato, se entenda de modo a abranger todos os lugares em que, aparente, necessária ou presumidamente, hajam sido praticados, pelo criminoso, ou criminosos, os atos materiais, preliminares ou posteriores à consumação do delito, e com este diretamente relacionado.”

Onde podemos ter uma pequena ideia da dimensão do que pode ser compreendido como local de crime, e o que envolve preservar e analisar todo este arcabouço probatório, que nos casos mais complexos podem representar centenas de vestígios.

Ainda, sobre a importância da preservação da cena de crime, o artigo 6º do Código de Processo Penal, cita:

Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais.

Ou seja, a história de cada vestígio, cada prova, inicia-se, brevemente, com as autoridades policiais, que primeiro chegam às cenas de crime, em seguida transita por longa jornada dentro dos órgãos periciais e segue até o final de todo processo criminal.

Este grande processo de conversão de um indício em vestígio, sua análise e manuseio, até que se transforme, verdadeiramente, num elemento de formação de convicção aceitável, processa-se uma longa cadeia de produção da prova pericial.

Cadeia esta assemelhada a um processo de transformação industrial, tendo no início a matéria prima, bruta (indício), que se transformará em algo útil, e confiável (a prova pericial), com a melhor qualidade técnica e científica quanto possível, com os recursos disponíveis para a análise dos corpos de delito, oriundos das investigações, quer na fase de inquérito, ou na fase judicial.

Como consta no caput artigo 158, do CPP:

“Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”

Este corpo de delito que, objetivamente, se trata do vestígio, que será submetido para a análise dos peritos. Provas estas que estarão sempre sob os cuidados de um responsável encarregado de custodiá-la. Numa conceituação ampla, “custódia” é o ato de guardar, preservar ou proteger para averiguações, ou conservado sob segurança e vigilância, como medida de preservação, prevenção ou proteção, conforme consta no Dicionário Michaelis. De onde surge a expressão cadeia de custódia, que em suma, registra e controla a história cronológica de análise de cada vestígio e seu manuseio.

A partir da alteração ora referida, o Código Processual Penal passou a detalhar e descrever as etapas da cadeia de custódia no artigo 158-B:

A cadeia de custódia compreende o rastreamento do vestígio nas seguintes etapas:

I – reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial;

II – isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime;

III – fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito, e a sua posição na área de exames, podendo ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indispensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo atendimento;

IV – coleta: ato de recolher o vestígio que será submetido à análise pericial, respeitando suas características e natureza;

V – acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características físicas, químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta e o acondicionamento;

VI – transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas (embalagens, veículos, temperatura, entre outras), de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse;

VII – recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado com, no mínimo, informações referentes ao número de procedimento e unidade de polícia judiciária relacionada, local de origem, nome de quem transportou o vestígio, código de rastreamento, natureza do exame, tipo do vestígio, protocolo, assinatura e identificação de quem o recebeu;

VIII – processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito;

IX – armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado, com vinculação ao número do laudo correspondente;

X – descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, respeitando a legislação vigente e, quando pertinente, mediante autorização judicial.”.

Também discorre sobre as centrais de custódia, no artigo 158-E:

Todos os Institutos de Criminalística deverão ter uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios, e sua gestão deve ser vinculada diretamente ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal.

§ 1º Toda central de custódia deve possuir os serviços de protocolo, com local para conferência, recepção, devolução de materiais e documentos, possibilitando a seleção, a classificação e a distribuição de materiais, devendo ser um espaço seguro e apresentar condições ambientais que não interfiram nas características do vestígio.

Sobre as centrais de custódia e a responsabilidade que recairá sobre os órgãos periciais, vislumbro grandes desafios à perícia criminal oficial, uma tarefa que será deveras árdua para ser implementada em sua plenitude com a eficiência que requer, considerando a diversidade, complexidade e o volume de vestígios periciados por nossos “CSI´s” Brasileiros.

Sem esquecer as precárias estruturas físicas da maioria dos órgãos de pericia oficial, os baixos vencimentos de seus profissionais e a carência de pessoal nos quadros da perícia criminal. A par disso, citamos como exemplo o Instituto-Geral de Perícias do RS, que, atualmente, trabalha com aproximadamente 40 % de seu efetivo.

Como podemos perceber, sob a ótica da prova penal, as alterações da lei anticrime notadamente objetivaram melhorar a produção da prova técnica e aprimorar os processos de registro e controle dos vestígios. Provas periciais estas, que se encarregam de contar e reconstruir a historia de um fato criminal, e isto envolve registrar a própria história de cada vestígio.

Será um processo longo e dispendioso em busca da excelência na produção da prova técnica no Brasil. Iludem-se aqueles que julgam que será tarefa fácil colocar em pleno funcionamento as centrais e cadeias de custódia. Com estruturas e metodologias compatíveis com a demanda crescente e  considerando as precárias instalações  da maioria dos estados brasileiros.

Sobre a perícia criminal recairá pesado fardo, mas, considerando  relevância das provas técnicas no processo penal, será imprescindível que melhorias sejam feitas na perícia oficial de natureza criminal, destinando investimentos, realizando concursos, tornando as carreiras atrativas com vencimentos compatíveis  e mantendo um processo de educação continuada dos entes envolvidos. Mas, também, que sejam dedicados esforços para que se a amplie a confiabilidade nas histórias relatadas nos laudos elaborados por nossa valorosa pericia criminal.

Lembrando que as histórias criminais contadas e discutidas nos tribunais, e a história de vida de cada prova é só uma pequena parte de toda esta longa história denominada prova penal.


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