Bom senso pericial

Eu já citei essa frase inúmeras vezes e vou repetir esse pensamento de Carl Sagan: “Alegações extraordinárias exigem evidências extraordinárias”.

Esse deveria ser um postulado de qualquer pessoa que se envolve com investigação de qualquer natureza. Especialmente se o sujeito faz isso profissionalmente e trabalha com investigação criminal, já que uma alegação sua pode representar a diferença entre um inocente preso e um criminoso solto. Afinal, o ceticismo racional é uma qualidade daquele que investiga.

Fica aqui a dica: se você quer ser um bom investigador de fatos, duvide sempre que alguém te apresentar uma alegação desacompanhada dos dados ou documentos que deem suporte ao alegado.

Quando alguém diz que peritos criminais decidiram sair da polícia civil para ter maiores salários, essa é uma alegação extraordinária. Mas onde estão as evidências extraordinárias? Eu procurei, mas não encontrei qualquer correlação estatística entre desvinculação dos órgãos periciais e incremento salarial de peritos criminais que os diferenciem de outras carreiras policiais, nem mesmo em Rondônia, Rio Grande do Sul e Paraná. Por que será? Talvez não seja esse o embasamento para a desvinculação da perícia, não é mesmo?

Quando alguém diz que os peritos criminais decidiram que ser policial não valia a pena porque o salário era ruim, essa é outra alegação extraordinária sem qualquer fundamento que a comprove.

Quando alguém diz que peritos criminais decidiram que queriam ser “meros funcionários públicos” ao pedirem a desvinculação, esse que alega demonstra total desconhecimento, vez que a carreira de perito criminal é típica de estado e cujo ingresso se dá por concurso público, isto é, peritos criminais sempre foram, são e sempre serão funcionários públicos, vinculados à polícia civil ou não.

Quando alguém diz que hoje, peritos criminais não estão ligados à segurança pública, também demonstra ignorância sobre o assunto, já que, mesmo desvinculados, órgãos de periciais estão sim, em geral, sob o condão da segurança pública.

Quando alguém indaga sobre quando o salário de um policial irá dobrar e afirma que nunca vai acontecer, novamente mostra que não conhece o passado, especialmente da polícia paulista, já em que no final do governo Fleury houve o equivalente a 118% de ganho salarial ao policial.

Quando alguém te diz que carteira funcional, viatura e porte de arma são exclusivos de policiais, é de bom tom recomendar que seu interlocutor estude a legislação e o dicionário. Afinal, carteira funcional é um documento que te identifica em uma função, que pode ou não ser policial. Viatura é uma designação a qualquer meio de transporte. E o porte de arma não é exclusividade de policiais, nos termos da legislação.

O fato é que o nosso modelo de segurança pública precisa ser modernizado. Vou deixar aqui uma sugestão de vídeo de uma audiência pública ocorrida na ALESP na qual detalho o assunto.

Se os profissionais da perícia criminal entendem que a desvinculação é o melhor para a sociedade, não é para almejar melhores salário, mas sim porque diversos estudos apontam para os benefícios de uma perícia criminal isenta. Inclusive, há recomendação internacional da desvinculação da perícia por dois relatórios da ONU, de 2004 e de 2009, pela Anistia Internacional, em 2009 quando aponta os 12 passos para combater à tortura.

E no Brasil? Bem, o Plano Nacional de Direitos Humanos, a 1a. Conferência Nacional de Segurança Pública, a Lei Federal 12.030/2009 e a Comissão Nacional da Verdade também endossam a desvinculação dos órgãos de perícia das polícia civis.

Ah, mas em São Paulo é diferente.

Não é não! Um parecer do jurista Ives Gandra Martins discute os benefícios e a razão de ser da perícia independente. O Parecer do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo também aponta a necessidade de desvinculação da Polícia Científica ao analisar as contas do governador. A própria ALESP, em 2014, referendou essa mesma desvinculação.

Mas não faz sentido que ocorram ingerências no trabalho do perito criminal.

É verdade. Em uma sociedade justa e de servidores desvestidos da vaidade do poder, ninguém em são consciência determinaria que um perito criminal desrespeitasse as normas legais. Porém, se essa sociedade existe, ela não se parece muito com a nossa. Vou deixar aqui outra sugestão de vídeo de outra audiência pública que participei, na qual mostrei exemplos bem documentados de ingerência sobre o trabalho do perito criminal.

E se para você ser policial é difícil, é ser pouco valorizado, é não ser ouvido pelo governo quanto as necessidades, eu tenho uma novidade para você: ser servidor público não só da segurança, mas da saúde, da educação ou de quase qualquer outro setor público também é difícil, é ser pouco valorizado, é não ser ouvido sobre suas necessidades.

Há, claro, exceções. Veja, por exemplo, o que está ocorreu aqui em SP em meio à pandemia do corona: com uma mão, o governador suspende o pagamento da metade do 13o no mês de aniversário e o pagamento do terço de férias (DECRETO Nº 64.937,DE 13 DE ABRIL DE 2020, vide DOESP de 14/04/2020); com a outra mão concede aumento salarial para o Tribunal de Contas do Estado, órgão que fiscaliza o governo.

Se você não percebeu isso, é porque não deve ser servidor público a tempo o suficiente, ou porque não está atento às notícias do setor público e político que o cerca.

Saudações periciais.

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PS-

Eu duvido que alguém faça essas afirmações hipotéticas que mencionei de maneira desonrosa, desrespeitosa ou que incite a animosidade entre colegas, especialmente no estado de SP.

Afinal, tecer comentários que possam gerar descrédito da instituição policial; ou tratar o superior hierárquico, subordinado ou colega sem o devido respeito ou deferência ou criar animosidade, velada ou ostensivamente, entre subalternos e superiores ou entre colegas, ou indispô-los de qualquer forma seriam transgressões disciplinares que qualquer professor de cursinho para concurso público saberiam, não é mesmo?

Links:
Crise? Alesp publica aumento salarial para o Tribunal de Contas de SP | VEJA
TCE-SP mantém aumento a servidores, mas avisa que vai pagar depois | VEJA
Folha de S.Paulo – Covas vai enfrentar distorções salariais – 29/12/1994