Frances Glessner Lee – A união entre arte e ciências forenses

Imagine como o artesanato pode entrar no campo de investigação policial, em uma época ao qual a investigação policial foi dominada principalmente por homens, e este artesanato tornar-se uma voz. Frances Glessner Lee elaborou cenas de crime utilizando miniaturas para treinar policiais a “condenar os culpados, liberar inocentes e encontrar a verdade em poucas palavras”.

Os cenários construídos por ela exploram a surpreendente interseção entre arte e ciência forense. Também conta a história de como uma mulher utilizou o artesanato tradicionalmente feminino, em uma época direcionado para mulheres da alta sociedade, como forma de revolucionar o ensino de melhores práticas na investigação policial. Frances foi a primeira capitã de polícia nos EUA e é considerada “mãe da ciência forense”. Foi ela que ajudou a fundar o primeira Departamento de Medicina Legal da Universidade de Harvard. Na época, nos anos 40, havia pouco treinamento para investigadores, o que fazia com que houvesse muitos erros ao longo da investigação, pois as evidências eram ignoradas ou até mesmo adulteradas pela forma incorreta de se manusear essas evidências, inclusive estabelecer uma cadeia de custódia adequada. Através da construção de dioramas, que são apresentações tridimensionais realistas da vida real, ela representou cenas de mortes acidentais, suicídios e homicídios em cenários do tamanho de casas de bonecas, com objetos construídos à mão, Frances revolucionou o emergente campo do ensino das ciências forenses, numa época ao qual poucos investigadores tinham treinamento em medicina para identificação de causa da morte. Ela construiu um equivalente à realidade virtual na época, para renderizar cenas com precisão e detalhes meticulosos como buracos de projéteis, padrões de respingos de sangue, processos de decomposição cadavérica entre outros aspectos envolvidos em uma cena de crime. Esses dioramas são utilizados até hoje como ferramenta de treinamento de policiais investigativos no Gabinete de Medicina Legal de Baltimore.

Glessner Lee at work.
Frances trabalhando na construção das miniaturas.

O trabalho artístico e interdisciplinar de Frances, também destaca a forma subversiva de criticar a sociedade. Suas representações escancaravam as “vítimas invisíveis”, mostrando-as em seus cenários como mulheres pobres e pessoas na marginalidade, cujos casos eram negligenciados. Frances colocou as cenas de crime em locais distantes da sua educação privilegiada, sendo que os ambientes representados no diorama são residências da classe trabalhadora, pensões, salões… Além disso, dos 19 dioramas construídos, 11 das vítimas representadas são mulheres. Frances sempre defendeu que uma investigação criminal deve superar todo e qualquer preconceito, tratando todos os casos com o mesmo rigor da lei, independente da vítima.

Frances teve uma trajetória diferente de uma garota de família rica da época do final do século XIX. Ela nasceu em Chicago, em 1878 e teve educação domiciliar junto ao seu irmão George. Anos mais tarde, George frequentou a Universidade de Harvard. Frances não frequentou a universidade, pois seus pais achavam que mulheres não precisavam frequentá-la. Casou-se com um advogado e teve três filhos, e em 1914 pediu o divórcio. Foi à partir deste momento que sua vida de mulher tradicional, dona de casa e submissa ao marido, começou a ter outro rumo.

imageFrances Glessner Lee e um dos seus diodoramas expostos na galeria Renwick, Washington DC.

Frances conheceu George Burgess Magrath, estudante de medicina de Harvard, que se tornou médico legista do condado de Suffolk, Massachusetts. Foi através dele que Frances se interessou e aprendeu sobre ciências forenses e percebeu a carência de uma metodologia de treinamento para as investigações de cena de crime. Em 1952, ela escreveu um artigo para o Jornal de Direito Penal, Criminologia e Ciências Forenses, enfatizando a importância de se manter a mente aberta:

“(…) com muita frequência o investigador tem um “palpite” e procura e encontra apenas as evidências para apoiá-lo, desconsiderando qualquer outra evidência que possa estar presente. Essa atitude seria calamitosa ao investigar um caso real.”

Quando Frances herdou a herança da família, ela teve subsídios para avançar o seu desenvolvimento na investigação criminal. Ela foi uma das principais fundadoras do Departamento de Medicina Legal em Harvard, inaugurado em 1931, sendo também a principal doadora de livros para a Biblioteca Magrath de Medicina Legal.

Nenhum esforço foi poupado para tornar todos os detalhes perfeitos e completos“.

Os detalhes nos dioramas são surpreendentes. Na cômoda há foto minúscula de casamento, os jornais, apesar de muito pequenos, tem títulos legíveis em diferentes tamanhos e fontes, tais com um jornal de verdade. Além da preciosidade e minuciosidade nos detalhes, os cenários construídos por ela eram perfeitamente funcionais. As fechaduras de portas e janelas, cadeira de balanço e até uma ratoeira realmente funcionam.

image-1Detalhe de “Living Room”. Observe os jornais fielmente representados e a minuciosidade dos detalhes.

“Striped Bedroom”, (1943-1948), detalhe do porta-retrato com uma foto de casamento bem nítido numa miniatura.

Frances completava cerca de dois dioramas por ano, com a ajuda de um carpinteiro. Ela começou no início da década de 1940. Os dioramas foram então utilizados em seminários. Os alunos receberam cerca de 90 minutos para estudar dois modelos e, em seguida, apresentar suas descobertas, após o que foram explicados os verdadeiros detalhes de cada diorama. Nem todos os dioramas apresenta um homicídio, e um caso particularmente complicado envolve uma hemorragia cerebral.

De acordo como Kimberlee Moran, diretora do departamento forense da Universidade Rutgers, os dioramas são peças fundamentais de ensino pois o aluno não pode mexer na cena, o que propicia uma visão fundamentada nas habilidades de ter pensamento crítico, documentação e resolução de problemas baseado na observação.

Numa época ao qual as mulheres estavam começando a sua luta por emancipação e direitos, Frances também foi alvo de críticas, o que fazia ela se afastar de convenções sociais de mulheres de sua classe e idade. Em uma revista dos anos 40, foi escrito um artigo ácido sobre ela, intitulado “Vovó: Detetive aos sessenta e nove”. Mesmo sendo alvo de críticas, justamente por ser à frente das convenções sociais de seu tempo, ela se tornou a primeira mulher nos Estados Unidos a se tornar capitã da polícia.

Glessner Lee (far right) at a Harvard Homicide Seminar, 1952.
Frances no Seminário de Homicídios de Harvard, em 1952. Era a única mulher do seminário.

Dois dioramas surpreendentes podem dar pistas sobre uma crítica muito além da análise de locais. São os modelos “Three Room Dwelling” e “Attic”. O primeiro representa uma “aparentemente” família jovem e feliz, em uma casa de classe média muito organizada, com uma cerca branca. Brinquedos espalhados na varanda… Em “Attic”, mostra uma mulher mais velha que aparentemente cometeu suicídio. A bagunça na sala. Os objetos empoeirados e antiquados tomam conta do espaço, junto às cartas antigas, dando a metáfora de que a vítima se sentiu antiquada e sem utilidade para ninguém

Nora Atkinson, curadora da Galeria Renwick, do museu Americano de Artes, fez uma interpretação sobre o diorama e a vida de Frances:

“Quando olho para essa família jovem e idealizada, penso na experiência de “felicidade” doméstica de Frances, que acabou em divórcio. E quando olho para essa velha, lembro que Frances estava finalmente livre para seguir o que amava quando chegou aos 60 anos, então para ela, velhice significava liberdade.”

“Attic”, (1946-1948)
“Attic”, detalhe.
“Attic”, detalhe
“Three Room Dwelling”, (1944-1946)
“Three Room Dwelling”, detalhe
ThreeRm_Crib
Three Room Dwelling”, detalhe do quarto do bebê. Observe o padrãos dos respingos de sangue.
“Three Room Dwelling”, detalhe
“Parsonage Parlor”  (1946-1948)

Fontes:

The Grim Crime-Scene Dollhouses Made by the ‘Mother of Forensics’

Day 25: Nutshell Studies of Unexplained Death

Murder Is Her Hobby: Frances Glessner Lee and The Nutshell Studies of Unexplained Death

Podcasts sobre o assunto:

Murder Is Her Hobby

The Nutshell Studies

Death in a Nutshell – Futility Closet