Os sete princípios das Ciências Forenses da Declaração de Sidney

Em maio deste ano a I.A.F.S (International Association of Forensic Sciences) emitiu um documento com os sete princípios das Ciências Forenses, considerando as novas perspectivas dos avanços tecnológicos e sua confiabilidade perante a comunidade científica da área perante a resolução ou prevenção de crimes. Visando um ganho a longo prazo, a IAFS vem atuando em reflexões e discussões que não sejam apenas centradas em aspectos meramente técnicos ou pautados em organizações, sendo “necessário uma reflexão mais profunda sobre o campo das ciências forenses e seus impactos”. Para tal, é necessário que a compreensão sobre o que são as ciências forenses, sua finalidade e princípios, possam ser aplicados em melhorias no futuro, no quesito de educação, formação, investigação, desenvolvimento e melhorias das práticas operacionais. Mas quem é a IAFS?

A IAFS é uma associação mundial de acadêmicos e profissionais em exercício de várias disciplinas da ciência forense, que incluem:

– Patologistas forenses e tanatologistas;

– Cientistas forenses;

– Profissionais que trabalham na polícia, laboratórios forenses governamentais ou privados que lidam com impressões digitais, DNA, análise de entorpecentes, toxicologia, armas de fogo, documentos, reconstrução de acidentes;

– Outros ramos da ciência forense, tais como psiquiatria forense, antropologia forense, direito médico e bioética, odontologia forense, investigação científica forense;

A Declaração de Sidney pauta os resultados dessas discussões e partilhou na comunidade científica. Antes de entrarmos nas definições e os sete princípios discutidos, vamos falar um pouco sobre quem é a IAFS, seu histórico e propostas para a comunidade científica. Por fim, abordaremos os princípios da declaração emitida no dia 18 de maio de 2021.

Objetivo

A Associação Internacional de Ciências Forenses (IAFS) não tem membros, orçamento, secretariado permanente, taxas de adesão e permite que qualquer pessoa que esteja inscrita em uma de suas reuniões que ocorrem no triênio possa votar e opinar sobre qualquer assunto pertinente ao tema. Possui uma Constituição simples que estabelece as seguintes metas e objetivos:

  1. Desenvolver as Ciências Forenses;
  2. Ajudar os cientistas forenses a se comunicarem e trocar conhecimentos técnico-científicos;
  3. Organizar reuniões que promovam o amplo debate e divulgar para a comunidade interessada;

História

Em julho de 1957, o professor Frederic Thomas, da Universidade de Gand, na Bélgica, concebeu uma reunião de cientistas forenses para fornecer uma oportunidade para discussões sobre patologia forense e patologias do trauma. A reunião aconteceu no Congresso Internacional de Patologia Clínica, sendo o Dr. Charles P. Larson eleito presidente do encontro. As reuniões aconteceram em duas sessões, durante 1 dia, em Bruxelas e na Universidade de Gand. O professor Milton Helpern foi o escolhido a organizar a segunda reunião, realizada três anos depois, em Nova Iorque. Incluiu temas como Toxicologia, Biologia Forense e Criminalística. O terceiro encontro ocorreu na Universidade de Londres, em 1963, presidida por Professor Camps e foi denominado “III Encontro Internacional em Imunologia Forense, Medicina, Patologia e Toxicologia”, abraçando outras ciências, como o estudo de documentos, ciência abordada no “I Encontro Internacional de Documentoscopia” que ocorreu em paralelo. Além disso, foi criada a “Associação Internacional de Toxicologistas Forenses (TIAFT)”, com a liderança de Professor George C. Clarke, que ocorreu durante sete dias.

Em 1966, obteve-se um padrão nos encontros de cientistas forenses. O Prof. Harold Gormsen, da Universidade Técnica da Dinamarca, presidiu o “IV Encontro Internacional de Medicina Forense”, que aconteceu em conjunto com o “II Congresso Trienal da Associação Internacional de Toxicólogos Forenses” e o “II Encontro Internacional de Documentoscopia”. Foi em 1966, que os participantes aprovaram a formação da “Associação Internacional de Ciências Forenses”, presidido por Prof. H. Ward Smith, que conseguiu copatrocínio da Sociedade Canadense de Ciências Forenses. Em 1967, Prof. Smith faleceu e não conseguiu presidir a reunião de 1969, sendo seu sucessor, o Prof. Douglas M. Lucas, Diretor do Centro de Ciências Forenses em Toronto.

O “V Encontro Internacional de Ciências Forenses” aconteceu em Toronto, em junho de 1969, sendo realizado em conjunto o “III Encontro Internacional do Congresso da Associação Internacional da Polícia Judiciária”, junto ao encontro de Toxicologia Forense e Documentoscopia. Foi neste ano que foi formalizada a Constituição da IAFS, redigida por Dr. Charles G. Farmilo e aprovada por demais membros.

Abaixo segue a continuação da história do IAFS, em tópicos resumidos:

  • Em 1972, ocorreu o “VI Encontro Internacional de Ciências Forenses” ocorreu em Belfast, coincidindo com o surgimento do terrorismo na Irlanda do Norte. Em razão disso, mudaram o encontro para a Universidade de Edimburgo, na Escócia.
  • Em 1975, ocorreu o “VII Encontro Internacional de Ciências Forenses” ocorreu em Zurich.
  • Em 1978, em Wichita, no Kansas, sendo presidido por Dr. William Eckert, patologista forense, aconteceu o “VIII Encontro Internacional de Ciências Forenses” e foi realizada a primeira reunião com o Conselho de Ex-presidentes do IAFS para selecionarem o próximo local de reunião e seleção de presidente. As escolhas anteriores eram definidas em “salas cheias de fumo” ao qual os participantes deliberavam em tom bastante informal, mas não desprovido de propósito, era como um “encontro de amigos”. A nona reunião foi marcada para junho de 1981 e aconteceu no Centro Estudantil da Universidade de Bergen, na Noruega.
  • Prof. Stuart S. Kind presidiu o “X Encontro Internacional de Ciências Forenses” em setembro de 1984 na Universidade de Oxford.
  • Para o décimo primeiro encontro, os delegados da Sociedade Canadense de Medicina Legal selecionaram Vancouver como local. O encontro foi em agosto de 1987, realizado no Hotel Vancouver e Hyatt Regency Hotel.
  • Em outubro de 1990, o décimo segundo encontro aconteceu no Centro de Convenções Adelaide. Foi criado uma premiação chamada “Medalha Adelaide” que foi atribuída a um cientista da área. A primeira medalha foi dada para o cientista canadense Douglas M. Lucas.
  • Em agosto de 1993, na Universidade de Dusseldorf, na Alemanha, aconteceu o décimo terceiro encontro. Presidido pelo Dr. Wofgang Bonte, o encontro foi marcado pela presença de muitos cientistas forenses que se encontravam isolados no leste europeu. A Medalha Adelaide foi entregue ao Dr. Ray L. Willians, diretor do Laboratório da Polícia Metropolitana de Londres.
  • Em agosto de 1996 aconteceu o décimo quarto encontro do IAFS aconteceu no Hotel Keio Plaza, em Tóquio. O cientista forense britânico Brian Culliford recebeu a Medalha Adelaide.
  • Em agosto de 1999, o décimo quinto encontro do IAFS aconteceu na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Foi presidida por Barry A. J. Fisher, diretor do Laboratório do Gabinete do Xerife do Condado de Los Angeles. O estatístico forense Dr. Ian Evett, do Serviço de Ciência Forense do Reino Unido, recebeu a Medalha Adelaide.
  • Em setembro de 2002, aconteceu o décimo sexto encontro do IAFS, novamente com muitas participações de cientistas forenses do leste europeu. Aconteceu em Montpellier, no sul da França e teve uma revisão da Constituição da IAFS, ratificada pelos cientistas presentes. Alastair Ross, Chefe do Instituto Nacional de Ciências Forenses recebeu a Medalha Adelaide.
  • Em agosto de 2005, S. C. Leung, Diretor do Laboratório Forense de Hong Kong presidiu o décimo sétimo encontro que aconteceu em Hong Kong, no Centro de Convenções e Exposições. Prof. Sir Alec Jeffreys, criador das análises e aplicações forenses para DNA recebeu a Medalha Adelaide.
  • O décimo oitavo encontro foi realizado em agosto de 2008, quatro dias antes da passagem do furacão Katrina. Foi presidida por Ronald Singer, Diretor do Laboratório de Ciências Forenses de Fort Worth. Prof. Willian Bass, antropólogo da Universidade de Tennessee e criador da “Fazenda de Corpos” recebeu a Medalha Adelaide.
  • Em 2011, o décimo nono encontro ocorreu em Portugal e Prof. Duarte Nuno Vieira, diretor do Instituto Nacional de Medicina Legal presidiu o encontro. Neste encontro, todos os continentes, com exceção da Antártida, estavam representados na delegação composta por 107 delegados de 109 países registrados. A Medalha Adelaide foi entregue ao cientista Angel Carracedo, do Instituto de Medicina Legal da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, como reconhecimento pelos seus estudos e avanços no campo da genética forense.
  • Em 2014, aconteceu o vigésimo encontro da IAFS, presidido pela primeira vez por uma mulher, a Dra. Heesun Chung, diretora do Instituto Nacional de Investigação Científica. O encontro aconteceu em Seul, na Coréia do Sul. Foram 296 apresentações orais, 341 folders e inúmeros workshops de exposição de trabalhos científicos. Dr. Tony Raymond, Diretor da Seção Estratégica de Ciências Forenses e cientista responsável pelo Grupo de Serviços Forenses da Força Policial de Nova Gales do Sul, recebeu a Medalha Adelaide pela sua contribuição para a Medicina Legal.
  • Em agosto de 2017, em Toronto, no Canadá, Dr. Michael Pollanen, Patalogista Forense Chefe da Província de Ontário, foi presidente do encontro. Pela primeira vez, o encontro teve workshops pré-conferência, sendo muitas delas em instalações laboratoriais reais. A Medalha Adelaide foi atribuída à Prof.ª. Cristina Cattaneo, da Universidade de Milão, em reconhecimento dos seus esforços na identificação de centenas de refugiados que morreram ao tentar atravessar o Mar Mediterrâneo a partir de África e do Oriente Médio.

As nomeações para a Presidência do encontro de 2020 foram apresentadas por candidatos de cinco países. Prof. Claude Roux, da Universidade de Tecnologia de Sydney, Austrália, foi eleito para presidir a 23ª Reunião Internacional em Sydney em 2020, que por razões de pandemia foi alterada para 2023, apesar de já estarem discutindo sobre assuntos pertinentes ao encontro, tal como os sete princípios das Ciências Forenses, ao qual serão expostos a seguir.

A definição de Ciência Forense de acordo com a IAFS na Declaração de Sidney:

“A ciência forense é um esforço orientado para a investigação com base em casos (ou em múltiplos casos), utilizando os princípios da ciência para estudar e compreender vestígios – os restos de atividades passadas (como a presença e as ações de um indivíduo) – através da sua detecção, reconhecimento, exame e interpretação para compreender eventos suspeitos de interesse público (por exemplo, crimes, litígios, incidentes de segurança).”

Os sete princípios a seguir foram extraídos do documento cujo link está ao final da postagem, com a tradução mais fiel possível:

Princípio 1: A atividade e a presença produzem vestígios são vetores fundamentais de informação.

Uma condição prévia para uma investigação científica forense é que as ações não podem ocorrer sem deixar vestígios. Por vezes são deixadas no local; outras vezes são levadas embora (máxima de troca de Locard). A natureza da atividade influencia os tipos de elementos que são trocados, e como e onde estão dispersos no ambiente. Este(s) item(s), um remanescente da atividade investigada, é(são) o que se denomina vestígio. O vestígio é uma fonte de informação suscetível de ser detectada, examinada e interpretada.

A rastreabilidade das atividades humanas está a mudar rapidamente no nosso ambiente digitalizado (ou seja, combinando aspectos físicos e digitais). O lugar da ciência forense é, portanto, cada vez mais central no estudo de eventos de interesse público, que estão eles próprios em transformação.

Princípio 2: A investigação de locais é um esforço científico e de diagnóstico que requer perícia científica.

O objetivo da investigação científica é inferir (ou seja, raciocínio sob incerteza) a reconstrução do evento através do estudo dos vestígios. O local de um evento é onde importantes aspectos relevantes podem ser reconhecidos e caracterizados no que diz respeito a sua posição relativa e que podem ser indicativos de sequência, orientação e interação. Esta informação combina para ajudar a compreender um número limitado de potenciais explicações relativas aos vestígios que necessitam de um exame e interpretação mais aprofundados nos processos de reconstrução e identificação. Esta complexidade requer uma mente treinada com uma ciência de amplo conhecimento e com capacidades de observação e detecção poderosas e proficientes que podem ser ampliadas por várias ferramentas científicas.

Princípio 3: A ciência forense é baseada em casos e dependente de conhecimentos científicos, investigativa metodologia e raciocínio lógico.

Os vestígios constituem sinais e a ciência forense envolve um processo científico para investigar e compreender o significado destes sinais com as suas ambiguidades, percepções erradas e pontos fortes. Este compromisso implica perguntar questões relevantes (sobretudo dependentes do contexto), fazendo observações, formando hipóteses e testando as hipóteses. Estes testes podem incluir medições facilitadas pela tecnologia, mas tais testes são apenas uma extensão do processo científico. O processo é caracterizado pelo pensamento crítico, raciocínio lógico (dedutivo, indutivo, sequestrado e analógico), resolução de problemas e julgamento informado. Esta abordagem é feita de maneira ineficaz – e talvez mesmo contraproducente – se não for aplicada dentro de um quadro lógico e utilizando uma metodologia de investigação bem validada.

Princípio 4: A ciência forense é uma avaliação dos resultados no contexto devido à assimetria temporal.

Em muitos casos, a qualidade do vestígio resultante de uma ação é tal que é incompleta, imperfeita, e/ou degradadas pela passagem do tempo, com tais perdas aumentando a incerteza e muitas vezes apoiando-se apenas aproximações relativas ao evento passado sob investigação. A verdade do local permanece no passado e é largamente inacessível. A ciência forense só pode ser utilizada para construir um modelo que seja descritivo de um determinado cenário, explicado pelo que é observado. O contexto é, portanto, essencial. Este não é um modelo geral, mas um modelo específico que só pode ser inferencial por natureza. Os cientistas forenses não podem determinar com certeza das circunstâncias definitivas em torno de um vestígio, mas apenas avaliar o valor relativo das descobertas sob diferentes causas ou cenários plausíveis. Tais avaliações devem ser imparciais e fundamentadas em rigor científico e transparência.

Princípio 5: A ciência forense lida com um conjunto de incertezas.

A ciência forense lida com um conjunto de incertezas que estão presentes em cada etapa do processo que se inicia com a geração de vestígios e move-se através de todas as etapas até à comunicação dos resultados e do valor ao destinatário pretendido (quer seja comunicado em documentos escritos ou na forma oral, como a sua apresentação em Tribunal). A investigação é necessária para identificar e quantificar estas incertezas com o conhecimento de que a incerteza nunca pode nunca ser eliminada.

Princípio 6: A ciência forense tem propósitos e contribuições multidimensionais

Os objetivos e contribuições da ciência forense são multidimensionais. Através do estudo sistemático de traços, a ciência forense traz (1) conhecimentos sobre o crime, mercados ilícitos e vários mecanismos que causam danos ou são de interesse para a sociedade, (2) contribuem para investigações de incidentes, e (3) apoiam a tomada de decisões jurídicas. A ciência forense fornece a base científica para a prática de uma variedade de funções e profissões relacionadas com a criminalidade, o desvio e a resposta social.

Princípio 7: Os resultados das ciências forenses adquirem significado no contexto

Os cientistas forenses precisam de agir com ética e imparcialidade, transparência e independência para assegurar que permaneçam fiéis à sua ciência e para que as informações por eles fornecidas para a potencial resolução do cenário sob investigação é útil e fiável, independentemente de quem beneficia da informação. Cientistas forenses devem defender os seus resultados e opiniões, conforme apropriado, reconhecendo ao mesmo tempo quaisquer alternativas plausíveis. Quando avaliado os resultados, devem ser consideradas pelo menos duas propostas alternativas.

Fontes utilizadas e demais informações:

Site oficial do Evento da IAFS 2023. Você pode assinar a newsletter e acompanhar as notícias sobre o encontro: 23rd Triennial Meeting of the International Association of Forensic Sciences| 20-24 November 2023, Sydney, Australia (iafs2023.com.au)

Fonte sobre o histórico da IAFS, disponível em PDF ao final do conteúdo do link: About IAFS | 23rd Triennial Meeting of the International Association of Forensic Sciences (iafs2023.com.au)

Carta original da Declaração de Sidney: https://iafs2023.com.au/cms/wp-content/uploads/IAFS-2023-Sydney-Declaration-18-May-2021.pdf