O seu DNA em uma obra de arte

Em um dia de trabalho, em meio a rotina estressante, a pausa para um almoço pode ser um alívio tão interessante quanto necessário. Imagine você, almejando esse breve intervalo no qual sua fome será saciada. Você tenta se desligar, se alimenta e ao final do procedimento pede um café espresso na cafeteria da esquina. Paga o café e deixa o local sem se preocupar. Você não percebeu, mas sua xícara foi furtada antes que alguém a levasse para a cozinha.

Mas e daí? Você, cliente da cafeteria, não tem nada a ver com isso. Certo?

Algum tempo passa. Você decide que precisa se desligar um pouco mais da sua rotina de trabalho. As pausas diárias para o almoço não têm sido suficientes para manter sua sanidade. Um amigo te convida para uma exposição de arte. Você torce o nariz. Mas quando descobre que a artista se propõe a fazer esculturas de rostos de pessoas com impressoras 3D a partir de que elas deixam para trás, a curiosidade te intriga e você decide ir. Quando chega na galeria de arte, vê uma série de fotos de lugares e de coisas deixadas por pessoas: uma bituca de cigarro, um chiclete mascado, um fio de cabelo preso a um quadro, uma xícara. Todas elas vêm acompanhadas de uma face humana impressa em 3D. “Fascinante!”, você pensa. Não tarda a reconhecer em uma das fotos uma xícara e a cafeteria que frequenta no pós almoço. Ao lado dela, uma face esculpida te parece estranhamente familiar. É você na escultura impressa em 3D!

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Às 12h15 de 6 de janeiro de 2013, Dewey-Hagborg coletou uma bituca (acima, à direita) na Myrtle Avenue (acima, à esquerda) no Brooklyn, NY. O DNA extraído da amostra revelou que o fumante era um homem de ascendência da Europa Oriental com olhos castanhos.

Parece ficção, mas é a realidade. A artista Heather Dewey-Hagborg criou uma iniciativa que faz exatamente isso: reconstrói as faces de pessoas a partir de amostras de DNA coletadas em materiais descartados na rua. Começou com amostras de cabelo coletadas no banheiro público da Penn Station, em Nova Iorque. Depois a artista expandiu suas amostras: bitucas de cigarros, chicletes mascados, unhas, saliva em talheres… tudo encontrado em lugares públicos. O que ela fez com isso tudo?

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Escultura criada por Dewey-Hagborg, baseado na amostra de DNA do cigarro coletado na Myrtle Avenue.

Primeiro ela se educou em biologia molecular e, conhecendo uma pouco das técnicas, passou a extrair DNA de todas essas amostras. O objetivo era avaliar algumas regiões do DNA extraído e, a partir delas, alimentar um programa de computador que dá uma cara àquela sequência de DNA. Dos modelos no ambiente virtual e com a ajuda de uma impressora 3D, Dewey-Hagborg materializa cada uma das faces reconstruídas a partir dessas amostras de DNA e expõe numa galeria de arte cuja exposição recebeu o nome de Stranger Visions. A produção é interessante: ao lado da “escultura” (que se assemelham a máscaras faciais penduradas na parede), a amostra de onde o DNA foi extraído é apresentada com fotos do local de coleta e outras informações como data.

A reação que essa forma de arte pode gerar nas pessoas é impressionante. Há oito anos comentamos aqui sobre a possibilidade de reconstruir características fenotípicas a partir do DNA. Já discutimos também a possibilidade de falsificação de amostras de DNA e como a perícia pode virar objeto de arte. Mas o que Heather Dewey-Hagborg está demonstrando levanta uma discussão muito mais ampla: amostras biológicas estão por todo o lugar e, com elas, material genético de todos nós se espalham pelas ruas. Questionamentos sobre a legalidade do que a artista vem fazendo são inevitáveis e necessários para o amadurecimento do tema, seja para a aplicação forense, seja pela exploração artística. A questão permeia até mesmo o direito a intimidade e a privacidade. Mas afinal, o que do corpo se afasta a ele ainda pertence?

Fora do Brasil, a exposição de Dewey-Hagborg repercutiu na mídia como uma reverberação de privacidade violada a ponta da artista criar soluções de contra-vigilância biológica. São dois sprays que ela chamou de Erase (para remover sua amostra biológica de uma superfície) e de Replace (para substituir com outra amostra que não a sua). A artista ainda disponibiliza a receita de cada um dos líquidos (para acessar o tutorial de como prepara-los, clique no nome dos respectivos sprays) em um site que ela criou. Em uma palestra no TED (video abaixo), ela explica como chegou ao seu método artístico e explõe um pouco da preocupação com a vigilância biológica aqui mencionada.

 

 

No Brasil, ainda há debate sobre a legalidade da coleta de DNA de material descartado. Dois casos emblemáticos iniciaram a discussão dessa problemática: o caso Pedrinho e o caso Glória Trevi. No primeiro, Vilma Martins respondia a processo pelo suposto sequestro de uma criança (Pedrinho) recém nascido e as investigações sugeriam que outras criança também havia sido sequestrada por Vilma (sua “filha” Roberta Jamily). Roberta, em depoimento, se recusou a fornecer material genético para o confronto, mas lançou uma bituca de cigarro no lixo da delegacia. Tal cigarro foi coletado e analisado, revelando que Roberta Jamily de fato não era filha biológica de Vilma Martins, mas sim de Francisca Maria Ribeiro da Silva. Como Pedrinho, Roberta também havia sido vítima de sequestro quando recém nascida.

No segundo, a cantora Gloria Trevi afirmava ter sido vítima de estupro quando presa na Superintendência da Polícia Federal. Do episódio, teria engravidado. Sem sucesso na investigação no âmbito administrativo (Trevi não tinha autorização para visita íntima), a alternativa era um exame genético de paternidade, confrontando o DNA da criança com o de supostos pais. Gloria Trevi não autorizou, entretanto, a coleta de material da criança, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a placenta poderia ser usada no exame. A decisão colocou o interesse público (conhecer o pai do recém nascido) acima do interesse individual de Gloria Trevi. Ao que ficou apurado, o pai era o empresário da cantora e a gravidez teria sido o resultado de uma inseminação artificial artesanal realizada por ela própria na prisão ou pelo contato sexual desautorizado. A gravidez seria uma alternativa não ser extraditada para o México.

Há muito o que ser discutido sobre o tema e confesso que gostaria muito de ver uma exposição como essa no Brasil. Interessante mesmo seria se Heather Dewey-Hagborg circulasse pelos corredores do Congresso Nacional, coletando xícaras, lenços e chicletes dali e apresentasse as esculturas resultantes em uma exposição no MASP, com grande cobertura da mídia. Quando a classe política se reconhecesse nas obras de arte, a discussão do assunto seria realmente ampliada por aqui. Enquanto isso, apreciamos a arte gerada por técnicas moleculares aplicáveis ao mundo forense e deixamos a pulga atrás da orelha quando tomamos nosso cafezinho depois do almoço.

Saiba mais

Smithsonian.com – Creepy or Cool? Portraits Derived From the DNA in Hair and Gum Found in Public Places

Folha de SP – 06/06/2003

Billboard.com – 10/03/2014

Podcast: Skepticality #223 – Pieces of You – Interview: Heather Dewey-Hagborg

Podcast: TeamHuman Ep. 08 – Heather Dewey-Hagborg