É sempre interessante quando um episódio de interesse criminal ganha espaço na grande mídia. Isso porque, num piscar de olhos, todo mundo muitos se tornam peritos e se julgam entendidos para comentar o caso. Talvez o que vos escreve seja mais um deles, mas ao menos prefere ver a coisa esfriar, os ânimos se acalmarem e a razão voltar à plenitude para avaliar a situação com um pouco mais de objetividade.
O caso da caravana do Lula, quando os ônibus foram alvejados por pedras e disparos de arma de fogo no Paraná, é um exemplo do que citado acima. Muito se falou, muito se especulou, “especialistas” apareceram para comentar o episódio e falar vinagre (para não dizer outra besteira).
Para quem não lembra do caso, refresque a memória: no dia 27 de março de 2018, uma caravana do ex-presidente atual presidiário Lula saiu do município de Quedas do Iguaçu em direção a Laranjeiras do Sul, em um percurso de não mais que 80km pelas Rodovias PR-473, BR-277 e BR-158, no estado do Paraná. No trajeto, os ônibus da caravana foram hostilizados por manifestantes contrários aos atos públicos de Lula, colocando miguelitos (dispositivos para furar pneus de veículos em movimento) na estrada e tacando pedras e paus. Não era novidade. O fato é que desde o início da trajetória, no Rio Grande do Sul, a caravana vinha sendo recebida com protestos contra o ex-presidente por onde passou, com ações que iam desde bloqueios das estradas até manifestações mais hostis com cartazes com xingamentos, ovos e tomates atirados.

Já perto de Laranjeiras do Sul, os motoristas teriam percebido que os pneus dos ônibus estavam murchos e pararam os veículos. Foi aí que, segundo os testemunhos, perceberam que haviam sido alvejados por disparos de arma de fogo. Ninguém se feriu (mesmo porque se alguém estivesse ferido, teriam reparado antes).
Não tardou para que o Festival de Asneiras começar. É nessa parte da história que começam a aparecer os “especialistas” e suas afirmações falaciosas e sem fundamento técnico, mas dignas de boas risadas para aqueles que conhecem minimamente de perícia. Vários veículos de comunicação propagaram as abobrinhas, entre eles a IstoÉ. Outro, O Antagonista, por exemplo, reportou a seguinte pérola:
Autoridades federais estão intrigadas com os tiros na caravana de Lula. Isso porque, pelo aspecto das perfurações, os disparos devem ter sido feitos à curta distância e com os veículos parados.
Essas autoridades dizem que, quando um veículo é atingido em movimento, a marca da bala deixa um aspecto de rasgo ou “respingo”. No entanto, as marcas mostradas são redondinhas. E os tiros parecem ter sido disparados de perto, porque os buracos são do mesmo diâmetro das balas. Quando é de longe, o buraco é mais largo, em razão da expansão da energia.
Essas “autoridades federais” deveriam ter um quadro na versão pericial do Porta dos Fundos. Mas vamos entender o porquê da falta de sentido:
a) Primeiro afirmam que os disparos foram a curta distância, “porque os buracos são do mesmo diâmetro das balas”. Ainda falam em “expansão da energia”(???) quando o disparo é de longe. Qualquer perito criminal com conhecimento em balística saberia que a definição da distância relativa (se a curta ou a longa distância) entre a boca do cano de uma arma de alma raiada e o alvo só poderia ser determinada pela presença/ausência dos elementos secundários do tiro. Com a bala o projétil, saem da boca do cano da arma uma língua de fogo (em meio a gases hiperaquecidos), fuligem (pólvora combusta), pólvora incombusta. Tais elementos geram alterações visíveis na superfície alvo quando o disparo é a curta distância, acarretando nas conhecidas zonas de chamuscamento, de esfumaçamento e de tatuagem, respectivamente. Em nada se relaciona com o diâmetro da bala do projétil;


Portanto, a ausência dos efeitos secundários do disparo sugere que o tiro não foi à curta distância.
b) Segundo, afirmam que o ônibus estava parado, pois “quando um veículo é atingido em movimento, a marca da bala deixa um aspecto de rasgo”. Ok, aqui teríamos algum sentido se (e somente se) a diferença de velocidade entre o ônibus e o projétil não fosse tão grande. Tomemos a análise do nobre colega mineiro, Perito Criminal João Bosco, publicada no Instagram (aliás, sigam o @professorjoaobosco, tremendo conhecedor e pesquisador das artes balísticas), para entender o porquê não faz sentido a justificativa. Vejam:

Refazendo os cálculos com os dados que agora se sabe (o calibre do projétil encontrado no ônibus era .32 e no trecho da estrada em questão a velocidade máxima permitida era de 60km/h – apesar de reportagens dizerem que a velocidade do ônibus era de 55km/h), teriamos uma diferença ainda menor, com d=0,66mm.
Bem, ao menos, ao final do texto, O Antagonista conclui com a frase “Obviamente, só a perícia pode resolver o enigma do ‘atentado’”. Obviamente!
No dia 05 de abril de 2018 a imprensa divulgava o trabalho da perícia. Dentre os apontamentos periciais presentes no laudo , destacamos seis achados de um dos veículos:
1) o pneu armazenado no compartimento de carga de um dos ônibus estava cravejado por miguelitos, corroborando o que já havia sido dito pelos motoristas;
2) manchas orgânicas amareladas “distribuídas nas regiões frontal e laterais, com características em tudo semelhantes à mistura de gema e clara de ovo”;
3) marcas de solados no flanco direito, “impregnadas por terra, indicativas de chute”;
4) uma marca de impacto de projétil de arma de fogo, tipo ricochete, “medindo aproximadamente 0,013m X 0,010m (treze milímetros por dez milímetros) em suas maiores dimensões”, situado “no quadrante central da terceira janela da lateral direita, (…) à aproximadamente 3,08m (três metros e oito centímetros) do solo e à aproximadamente 0,88m (oitenta e oito centímetros) da borda posterior deste vidro, o qual incidiu seguindo uma trajetória da direita para a esquerda, de trás para frente e ligeiramente de cima para baixo, em um ângulo de aproximadamente 9,1°”. Exames complementares mostraram que existia chumbo impregnado na região de impacto;

5) um orifício provocado pela transfixação de projétil de arma de fogo, “medindo aproximadamente 0,010m X 0,008m (dez milímetros por oito milímetros) em suas maiores dimensões (…) situado no terço posterior do flanco direito, à aproximadamente 2,19m (dois metros e dezenove centímetros) do solo e à aproximadamente 2,80m (dois metros e oitenta centímetros) da borda traseira do veículo, o qual incidiu seguindo uma trajetória da direita para a esquerda, de trás para frente em um ângulo de aproximadamente 60° (…) e ligeiramente de cima para baixo, em um ângulo de aproximadamente 18,6°” (vide a imagem extraída de IstoÉ, acima representada). Exames complementares também mostraram que existia chumbo impregnado na região de orifício, tendo sido um fragmento do projétil recuperado na lataria. Da analise do fragmento se conclui que o calibre era .32;

6) outras amolgaduras e pequenos danos na carroceria do ônibus, sem resíduo de chumbo, atribuídos a pedras arremessadas contra o veículo.
Não resta muita dúvida de que a caravana foi hostilizada e de que os manifestantes contrários ao ato protestaram de maneira, no mínimo, inapropriada. Afinal, materialmente está demonstrado que pontapés foram desferidos, pedras foram lançadas, ovos arremessados e arma(s) de fogo disparada(s). Mas a partir da materialidade apontada nos itens 4 e 5 (os danos provocados pelos projéteis), outras informações relevantes foram apresentadas. A perícia paranaense determinou a posição do atirador.
O cálculo da posição aproximada do atirador pressupôs que os dois disparos que produziram os danos mencionados em 4 e 5 partiram do mesmo atirador (portanto da mesma posição) e que o eixo longitudinal do ônibus estava paralelo ao pavimento. O método consistiu em determinar a intersecção das trajetórias estimadas a partir dos ângulos aferidos nos danos provocados pelos projéteis, utilizando triangulação e relações trigonométricas:
Considerando-se então os ângulos de inclinação de incidência longitudinal (9,1° e 18.6°, respectivamente), juntamente com a altura destes impactos em relação ao solo (3,08m e 2,19m, respectivamente) e ainda, à distância entre estes impactos (6,15m), calculou-se que o ponto de intersecção do prolongamento das linhas correspondentes aos ângulos de incidência longitudinal ficaria à aproximadamente 5,86m (cinco metros e oitenta e seis centímetros) do solo e à uma distância de aproximadamente 10,96m (dez metros e noventa e seis centímetros) à retaguarda do impacto na lataria.

Confrontando estes resultados (h = 5,86m e d = 10,96m) com o ângulo transversal de aproximadamente 60° constatado no orifício transfixante, se calculou que o atirador se encontraria à uma distância da lateral direita dos veículos de aproximadamente 18,90m (dezoito metros e noventa centímetros).

Não foi aqui realizada nenhuma conferência quanto aos cálculos que determinaram a posição do atirador. Mas há alguns pontos que merecem discussão e comentários sobre essa abordagem. Apesar de aparentemente válida, ela desconsidera alguns fatores importantes. É que devemos atentar a seguir.
i. Não se avalia a precisão das medidas dos ângulos da trajetória nos planos considerados. O cálculo do ângulo de impacto a partir das medidas tomadas dos danos não é tão preciso assim, de forma que o mais seguro seria considerar alguma imprecisão nas afirmações. Afinal, poucos graus de diferença nos ângulos poderia afetar a posição do atirador em metros.
ii. A posição da intersecção das trajetórias dos projéteis (suposta posição do atirador), em relação ao pavimento, considerou que o eixo longitudinal do ônibus estava paralelo ao solo. Isso não necessariamente é verdadeiro, já que em regra veículos em aceleração tendem a apresentar a porção dianteira mais alta que a porção traseira, e vice-versa (veículos freando tendem a apresentar a dianteira mais baixa que a traseira). Não se sabe de o veículo estava em movimento, tampouco se estava em velocidade variável.
iii. O relevo da região também parece relevante para posicionar o atirador. O laudo pericial sugere, ao que foi apresentado pelo portal G1, que “por ser uma rodovia, o mais provável é que os disparos tenham sido feitos de um barranco”. Mas o barranco precisaria ter ao menos 4m de altura em relação ao pavimento (considerando que o atirador tenha entre 1,6m e 1,9m de altura). Mas ao ponderar pela variação da inclinação longitudinal da via, o barranco não precisa ser tão alto. Aliás, se o veículo estivesse em um aclive, o atirador poderia esta até mesmo no nível do asfalto (se horizontal e anterior ao aclive – vide figura abaixo).

iv. É possível que os dois danos provocados por projéteis disparados por arma de fogo tenham partido de armas diferentes, e até mesmo em momentos diferentes. Isso porque apenas um projétil foi recuperado e, portanto, nem mesmo o calibre da arma que disparou o projétil que ricocheteou no vidro pode ser determinado. Se foram duas armas disparando em momentos diferentes, então a abordagem apresentada para estimar a posição do atirador cai por terra.
v. Uma outra possibilidade é que outros danos na lataria externa do veículo também podem ter sido provocados por projéteis disparados por arma de fogo. Essa hipótese parece ter sido descartada por não terem sido encontrados resíduos de chumbo nesses danos. Porém, não há elementos que permitam afirmar que os possíveis projéteis que causaram esses danos eram de chumbo nu. Se fossem encamisados (revestidos por cobre, por exemplo) ou mesmo de cobre maciço, não se esperaria encontrar chumbo no dano. Mas, considerando a experiência dos peritos do caso, é bem pouco provável que outros danos tenham sido provocados por impacto de projétil disparado por arma de fogo, já que pela morfologia do dano, característico, teriam percebido.
vi. Ainda que pouco provável, é possível que a posição do atirador seja bem mais longínqua em relação ao veículo. O método utilizado pressupõe uma trajetória retilínea para os projéteis, mas sabemos que a trajetória de um projétil disparado é parabólica, como num lançamento oblíquo. Nesta remota possibilidade, os disparos teriam sido realizados com inclinação para cima e os projéteis teriam atingido o ônibus quando estivessem na porção descendente da trajetória (vide figura abaixo).

É provável que existam outros questionamentos, mas o tratamento dado pela perícia paranaense foi bem interessante. Se considerarmos que muitos dos elementos que permitiriam ponderar a posição do ônibus relativa ao atirador são desconhecidos no caso concreto (inclusive alguns dos ponderados acima), então talvez seja mais conservador pressupor mesmo que veículo e atirador estavam no plano horizontal, que ambos os tiros partiram da mesma arma (logo, que a posição do atirador era a mesma em ambos os disparos) e que não havia elementos de ordem material que permitissem concluir por outros danos causados por outros tipos de munição.
Este post deve gerar alguma discussão entre os leitores, sejam eles peritos criminais, leigos interessados, ou fãs do dono da caravana. O espaço está aberto para tal, mas não esperem que a discussão ideológica seja considerada.