Do acervo às chamas: o que os incêndios do Museu Nacional e da Biblioteca de Alexandria têm em comum?

Eram 19h30 de ontem quando uma fagulha deu ignição à ciência, à história brasileira. Mas não foi como a ignição de um foguete que consigo eleva a esperança da descoberta ou que simboliza o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Foi o início das mesmas chamas que consumiram o conhecimento da Biblioteca de Alexandria. Queimaram o Museu Nacional.

As semelhanças não se restringem à destruição do conhecimento. O incêndio da biblioteca do período helenístico não teve a causa (nem a época) bem definida, mas o que mais se diz é que foi o resultado da ordem de Júlio César de incendiar o porto de Alexandria em opressão ao inimigo Ptlomeu XII, no último século antes de Cristo, quando as tropas de Ptlomeu tentavam sitiar César e Cleópatra na cidade. Mas historiadores como Heather Phillips defendem que a ruína da Biblioteca de Alexandria foi progressiva e por conta da falta de investimentos, algo que qualquer brasileiro interessado em ciência conhece bem. Phillips aponta que outro imperador romano, Marco Aurélio Antônio, interrompeu a verba da biblioteca, aboliu bolsas de estudo e expulsou acadêmicos estrangeiros. Sem contar que Alexandria foi, historicamente, palco de muitas ações militares que podem ter contribuído com danos à estrutura da biblioteca.

Mas onde estão as semelhanças? Não é difícil notar que o Museu Nacional sofreu do mesmo mal: a opressão da administração pública brasileira à ciência e à história do Brasil. Uma opressão diferente daqueles vividas nos tempos de Roma; uma opressão silenciosa que se inicia com falta de investimento, passam por atrasos em obras e por cortes de orçamento, e culmina com o pó (de cinzas). A destruição do acervo do Museu Nacional por um incêndio simboliza o descaso das organizações do Estado Brasileiro com a ciência. As verbas para manutenção do prédio estiveram aquém não apenas no necessário, mas do previsto para esse fim no próprio orçamento. As sucessivas reduções de investimento em ciência dos últimos anos, os recentes e massivos cortes no orçamento do CNPq e a desestruturação aliada à baixa nos recursos humanos do IPHAN são mais alguns exemplos da opressão silenciosa à ciência e ao patrimônio histórico da antiga Terra Brasilis. Interessante que, como Alexandria, o Rio de Janeiro é, lamentavelmente, uma cidade decadente e sitiada, inclusive com militares intervindo. Coincidência?

A história lamenta a perda do acervo histórico de Alexandria. Os levantamentos de Heather Phillips sugerem que 40 mil papiros foram perdidos no incêndio (o acervo contava com algo entre 400.000 e 900.000 papiros, ou seja, entre 4,5% e 10% do acervo teria sido afetado). O acervo do Museu Nacional era de mais de 20 milhões de itens, dos quais as primeiras e mais otimistas estimativas apontam que ao menos metade tenha se perdido (já sabemos que cerca de 90% foi perdido – vide atualização no final do post). Se 40 mil papiros representaram grande perda, o que dizer que milhões de itens?

Como se não bastasse um prédio histórico, com pavimentos e estruturas em madeira e repleto de material combustível, não possuir sistemas automatizados de prevenção e combate ao fogo, a falta de infraestrutura também afetou o combate ao incêndio depois de começado. O Corpo de Bombeiros reportou que os dois hidrantes mais próximos tinham baixa carga (não havia pressão suficiente) e recorreram ao lago da Quinta da Boa Vista.

Uma investigação deve ter início por parte da Polícia Civil carioca para apontar as causas do incêndio. Porém, sabemos que incêndios dessa magnitude e em prédio estruturalmente inflamável, dificilmente será possível apontar as causas de maneira precisa. Em se tratando de patrimônio da União, a Polícia Federal também deve atuar por meio da Delegacia de Repressão a Crimes de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico. Também não há muita esperança na conclusão efetiva dos trabalhos de investigação. E mesmo se causas forem apontadas, o patrimônio ali presente já não tem mais volta.

Há, em nosso entender, a necessidade de apuração da negligência pública em estabelecer a infraestrutura mínima para garantir a preservação de um prédio que, além de histórico, recebe milhares de visitantes todos os dias.

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Em tempo: o combate às chamas ocorreu madrugada a dentro, já no dia 3 de setembro. É ainda mais trágico pensar que dentre as  coleções hoje em cinzas estavam muitos espécimes biológicos ainda sequer estudados, de espécies sequer catalogadas. No dia 3 de setembro é celebrado o dia do biólogo, em virtude da data de regulamentação da profissão (3 de setembro de 1979) e criado o Conselho Federal de Biologia (CFBio). É mais que certo que não há o que comemorar no dia de hoje.

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Atualização de 18h52, 03/09/2018: Em coletiva de imprensa, a vice-diretora do Museu Nacional, Cristiana Serejo, afirmou que os detectores de fumaça não funcionavam e que apenas 10% do acervo não foi destruído. Entro o que restou, estão o meteorito Bendegó, uma fração da coleção zoológica, o departamento de zoologia de vertebrados, o herbário, a biblioteca central e alguns minerais e cerâmicas.