A Criminalística e o método científico

“O dever de um perito é dizer a verdade; no entanto, para isso é necessário: primeiro saber encontrá-la e, depois querer dizê-la. O primeiro é um problema científico, o segundo é um problema moral”. (Nerio Rojas)

A Criminalística que fundamenta as bases das Ciências Forenses desenvolveu-se principalmente no último século. De uma maneira histórica, sob aspectos da luz do Direito, de acordo com COSTA et al. (2018), em 1532, Carlos V promulgou o Código Criminal Cardino, que exigiu à presença de técnicos para interpretarem os vestígios criminais, demonstrando que desde os primórdios exige-se conhecimento técnico para análise de vestígios ligados às pessoas envolvidas no crime. Porém, cabe mencionar que as aplicações da área criminal provêm de muitos anos antes, valendo aqui citar como relevância do aspecto histórico.

As primeiras ciências a notoriamente emprestar seus conhecimento à Justiça foram as naturais cuja aplicação foi utilizada por médicos durante muito tempo. Estes, sistematicamente, prestaram serviços à justiça desenvolvendo técnicas específicas às demandas gerais, culminando com o que hoje é conhecido por Medicina Legal. (ESPINDULA et al.,2017)

Ainda sobre o mesmo tema, podemos citar FRANÇA (2015), que menciona a Medicina Legal como uma ciência plurisingular, ou seja, como ciência é de cunho técnico e científico, exigindo recursos e práticas, trabalhando dentro de aspectos de probabilidades objetivas. Uma vez que a disciplina não trabalha apenas nos aspectos das ciências hipocráticas, se utiliza de disciplinas acessórias, como por exemplo, o Direito, além das ciências naturais.

Com o passar do tempo, a Medicina Legal por si só não foi suficiente para abrigar todas as demandas para suprir os questionamentos da Justiça. Em primeiro momento os químicos foram os que se integraram junto à Medicina Legal, com o intuito de abranger “todas as técnicas científicas à serviço da lei” (ESPINDULA et al.,2017), surgindo assim, em 1893, o conceito de Criminalística, sendo primeiramente denominado pelo jurista alemão Hans Gross, autor da obra “System der Kriminalistik”.

Em Lausanne, na Suíça, foi criada a primeira cadeira acadêmica dedicada às Ciências Forenses, com exclusividade de suprir a investigação de casos criminais. Em 1947, durante o 1º Congresso Nacional de Polícia Técnica, realizado em São Paulo, o professor Del Picchia definiu Criminalística como “a ciência que objetiva reconhecer e interpretar os indícios materiais extrínsecos que estão relacionados ao delito e seu autor. Cabe mencionar que o que chamamos de vestígios intrínsecos, são aqueles que são da alçada da Medicina Legal”.

Porém, analisando a diversificação que existe nas práticas delituosas, não foi possível sustentar apenas essa definição de Del Picchia. Sabe-se que hoje, a Criminalística possui seus fundamentos em diversos campos científicos para investigar o delito através dos vestígios deixados na cena do crime, tais como Biologia, Química, Medicina, Engenharia, Informática, Física entre outras. Além dessas áreas, a Criminalística também possui ferramentas que servem de auxiliares, para as ciências mencionadas, tais como Balística Forense, Documentoscopia, Mercealogia e a Grafotecnia.

Para entender um pouco sobre a evolução da Criminalística, STUMVOLL (2019), aborda um breve resumo da história. O Imperador César pode ter sido o primeiro a aplicar o método de exame de local, apontando marcas suspeitas de uso de violência na morte de Aprônia, esposa de um dos servidores do imperador, Plantius Silvanius, que supostamente teria a atirado da janela do quarto, sendo este talvez a primeira aplicação de um método de constatação criminal direto em local de crime. O autor em sua obra “Criminalística”, que faz parte da série “Tratado de Perícias Criminalísticas”, resumiu os pontos mais importantes do histórico da Criminalística:

  1. 1560 (França) – Ambroise Paré expôs para a comunidade científica da época, os ferimentos produzidos por arma de fogo.
  2. 1563 (Portugal) – João de Barros publicou observações realizadas na China “sobre tomadas de impressões digitais, palmares e plantares, nos contratos de compra e venda entre pessoas”.
  3. 1651 (Itália) – Publicado “Questões Médicas” por Paolo Zachias. Considerado “pai da Medicina Legal”.
  4. 1665 a 1686 (Itália) – Marcelo Malpighi estudou as características das impressões dactilares, desde as características das polpas digitais e palmas das mãos. “Capa de Malpighi” é a denominação que se dá a “uma das partes da pele humana.”.
  5. 1753 (França) – os primeiros estudos referentes à Balística Forenses foram conduzidos por Boucher.
  6. 1805 (Áustria) – início do ensino da Medicina Legal, como disciplina. Na Escócia e na Alemanha, iniciou-se em 1807 e 1820, respectivamente. Depois de 1820, foi propagado como disciplina na França e Itália.
  7. 1809 (França) – Eugene François Vidocq era um famoso delinquente na época, sendo que se gerou uma discussão sobre “maior equívoco da investigação policial” ou “transformação em uma das melhores polícias do mundo” devido aos sistemas de investigações criados por Vidocq.
  8. 1823 (Alemanha) – apresentado um tratado que revolucionou a história da datiloscopia. O autor foi Johannes Evangelist Purkinje agrupou numa tese de doutorado apresentada a Universidade de Breslau, os 9 tipos de desenhos digitais, “assinalando a presença do delta e admitindo a possibilidade destes nove tipos serem reduzidos a quatro”, originando o “Tratado de Datiloscopia”.
  9. 1829 (Inglaterra) – fundou-se a Scotland Yard. Apesar de denominar-se como a polícia londrina, o nome Scotland surgiu porque o imóvel ao qual a polícia ocupava na época, “era morada de alguns príncipes escoceses enquanto visitavam Londres”.
  10. 1840 (Itália) – Foi criada por Orfila a Toxicologia. Ogier seguiu na colaboração para esta ciência em 1872. Orfila, através da Toxicologia, elucidou um caso de envenenamento por Arsênio.
  11. 1844 (Itália) – encontrada na Bula do Papa Inocêncio VIII (papa do período de 1484 a 1492), a recomendação de investigação médica em assuntos criminais.
  12. 1858 (Índia/Japão) – o Delegado do Governo inglês da cidade de Bengala (Índia) realizou estudos referentes à “imutabilidade das impressões digitais”. Na mesma época, Henry Faulds, médico inglês que atuava no Hospital de Tóquio, “observou impressões digitais em peças de cerâmica pré-histórica japonesa, iniciando, desse modo, seus estudos sobre impressões digitais, apresentando, finalmente, as seguintes sugestões: que as impressões digitais fossem tomadas com tinta preta, de imprensa; que fossem examinadas com lente; que existe certa semelhança entre as impressões digitais dos homens e dos macacos”.
  13. 1984 (Itália) – proposto o “Sistema Antropométrico como processo de Identificação”, por Lombroso.
  14. 1866 (Estados Unidos) – Allan Pinkerton colocou em prática o uso da fotografia como forma de identificação de delinquentes. Hoje é uma disciplina denominada Fotografia Forense.
  15. 1882 (França) – criado o “Serviço de Identificação Judicial”, por Alfonso Bertillón. O mesmo também publicou tese sobre o Retrato Falado, disciplina que também foi precursora dentro do sistema de Criminalística.
  16. 1888 (Inglaterra) – Sir Francis Galton foi convidado pelo “Real Instituto de Londres” para debater sobre “o melhor sistema de identificação”, “devendo proceder a estudos comparativos entre os sistemas de Bertillón (Medidas Antropométricas) versus os sistemas de impressões digitais”. Atestando a superioridade deste último, Galton elaborou um sistema de classificação datiloscópico. O estudo foi publicado na revista científica Nature e foi a primeira vez que os três tipos de classificação foram apresentados: os arcos, presilhas e verticilos.
  17. 1891 (Argentina) – Juan Vucetich que trabalhava como Encarregado da Oficina de Identificação de La Plata apresentou a Icnofalangometria, combinando o sistema antropométrico de Bertillón com as impressões digitais.
  18. 1892 (Áustria) – Han Gross publicou a obra “Manual do Juiz de Instrução – todos os sistemas de Criminalística”. Nesta obra, a Criminalística foi discutida e sistematizada levando em consideração as matérias de Antropometria, Contabilidade, Criptografia, Desenho Forense, Documentoscopia, Explosivos, Fotografia, Grafologia, Acidentes de Trânsito Ferroviário, Hematologia, Incêndios, Medicina Legal, Química Legal e Interrogatório; Avaliação e Reparação de Danos; Exames de Armas de Fogo; Exames de Armas Brancas; Datiloscopia; Exame de Pegadas e Impressões entre outras.
  19. 1896 (Argentina) – Vucetich consegue fazer com que “a Polícia do Rio da Prata deixe de utilize o método antropométrico de Bertillón; ainda, reduz a quatro os tipos fundamentais da Datiloscopia, determinados pela presença ou ausência de delta”.
  20. 1899 (Áustria) – Hans Gross criou os “Arquivos de Antropologia e Criminalística
  21. 1902 (Portugal) – ampliaram-se o sistema de identificação datiloscópica com a inclusão de impressões plantares (sola dos pés) e palmares (palma da mão).
  22. 1903 (Brasil) – No Rio de Janeiro foi fundado o “Gabinete de Identificação”.
  23. 1908 (Espanha) – Constancio Bernaldo de Quiroz foi importante para a evolução da Polícia Científica, ao qual passou por três fases distintas, sendo a primeira fase usando os métodos controversos de Vidocq, ao qual “eram recrutados entre os próprios delinquentes porque eram conhecedores dos criminosos e as artes dos malfeitores”. Na segunda fase, encontra-se ainda uma fase empírica. Em contraponto, surge a terceira fase que delineia a polícia técnico-científica até hoje, ao qual “se unem métodos de investigação técnica fundados na observação racional e nas experiências químicas, fotográficas, etc
  24. 1909 (Estados Unidos) – Publicado livro intitulado como “Questioned Documents”, sobre análise de documentos suspeitos de fraude.
  25. 1920 (México) – Benjamim Martinez fundou o “Gabinete de Identificação e o Laboratório de Criminalística”.
  26. 1933 (Estados Unidos) – através do Procurador Geral da República, Homer Cummings, foi fundado em Chicago, o famoso F.B.I (Federal Bureau of Investigation).

Como método de trabalho, a Polícia Técnica utiliza postulados científicos para que as conclusões sobre o crime cometido sejam respaldadas. Evidencia-se, portanto, da importância da Criminalística que se utiliza de técnica e ciência.

O método científico tem como base o teste de hipóteses, e se o método de análise selecionado não permitir que as respostas das hipóteses sejam conclusivas, mas, tal imprecisão for conhecida e construir no corpo do laudo os limites dessa análise, o resultado pode servir aos interesses da Criminalística. Como exemplo, podemos mencionar os exames preliminares de constatação de drogas que mesmo apresentando falso-positivo para substâncias diversas, a Justiça reconhece essas limitações e acata apenas para decisões de possíveis flagrantes, devendo prosseguir com exames mais complexos e decisivos com técnicas mais avançadas de alta sensibilidade e especificidade.

Quanto aos casos cuja metodologia não está consolidada em sua totalidade, o perito responsável pelo caso deve escolher por um método e explicar o motivo de escolha desse método. Paralelo a este fato, há também técnicas que foram consolidadas na Criminalística, porém com o decorrer do tempo e diversas contestações, o que era tido como como metodologia correta e apropriada, teve de ser suprida por uma nova metodologia, que sanasse os problemas que tornavam o mesmo ineficiente. Como exemplo, ESPINDULA et al. (2017) cita o “teste do nitrito” ao qual o sal de nitritos produzidos pela combustão do disparo de arma de fogo poderia detectar se a arma foi utilizada nos últimos sete dias, fornecendo uma avaliação da janela de tempo de disparo. Por mais que seja específica para nitrito, os resultados desse teste não podem ser utilizados como prova definitiva. Tal fato evidencia que as técnicas utilizadas na Criminalística devem sempre ser constantemente validadas, seguindo por completo o rigor científico. Dentro deste rigor destaca-se os seguintes princípios científicos, de acordo com STUMVOLL (2019) e ESPINDULA (2014):

Princípio de Produção: sobreditos agentes agem produzindo vestígios indicadores de suas ocorrências com grande variedade de naturezas, morfologia, estruturas e dinâmicas. Possuem características peculiares. A partir do princípio de produção, chega-se ao princípio de uso, pois dentro do contexto de peculiaridades do objeto produzido, chega-se na forma de como este objeto pode ser utilizado.

Princípio do Uso: este princípio auxilia o perito criminal “na busca pela caracterização do princípio da unicidade, pois é também um fator comprovado tecnicamente” (ESPINDULA, 2014). Dentro destes fatos, discorre-se que “Dois objetos não são utilizados de mesmo modo”. De acordo com o mesmo autor, um sapato, por exemplo, é “utilizado de forma diferente por qualquer pessoa, deixando marcas diferentes”.

Os fatos apurados pela Criminalística são produzidos por agentes químicos, físicos ou biológicos, sendo os vestígios caracterizados e separados dentro do tipo de agente causador. Como exemplo, podemos citar os vestígios deixados por dispositivos tecnológicos, como computadores e celulares que só podem ser investigados mediante outras ferramentas de mesma natureza.

Princípio do Intercâmbio: os objetos ou materiais que ao interagirem entre si, permutam características ainda que microscópicas. O resultado dessa permuta é importante para a atividade pericial, pois “trazem ao conjunto das evidências constatadas pelos peritos, informações capazes de se somar ao conjunto dessa análise pericial”. (ESPINDULA, 2014)

Princípio da Reconstrução: a aplicação de leis, teorias científicas e conhecimentos tecnológicos que embasem toda a complexidade dos vestígios do local, “estabelecendo os nexos causais entre as várias etapas dessa ocorrência, até chegarmos, então, na reconstrução do referido evento.

Em Criminalística, além dos princípios científicos citados, podemos destacar 5 princípios que são postulados como “Princípios Fundamentais da Perícia Criminalística” cujo detalhamento em pormenores será exposto num post futuro sobre Teoria dos Vestígios. Esses princípios fundamentais, segundo STUMVOLL (2019), referem-se a observação, análise, interpretação, descrição e documentação da prova, descritos à seguir:

  1. Princípio da Observação: Segundo Locard, “todo vestígio, deixa uma marca”. O autor discorre sobre esse princípio enfatizando que em locais de crime praticamente são inexistentes ações que não resultem em marcas, não deixando de mencionar também a própria evolução da ciência para detectar esses vestígios e micro vestígios.
  • Princípio da Análise: a análise pericial deve sempre seguir o método científico, definindo a forma como o fato delituoso ocorreu, ainda que em teoria. Para tal, deve-se utilizar-se da análise, coleta de dados (os vestígios e indícios) para encontrar respostas que corroborem com o desenvolvimento do crime ocorrido, através de hipóteses que sejam coerentes, ou seja, “que comprovem através do método científico, a materialidade do fato“.
  • Princípio da Interpretação: dois objetos podem ser indistinguíveis, mas nunca idênticos, sendo que o ato de interpretar um local de crime através da análise de vestígios e indícios, é o resultado final que se busca na criminalística(ESPINDULA, 2014).
  • Princípio da Descrição: o resultado de um exame pericial é constante com relação ao tempo e deve ser exposto de forma ética e dentro das normas jurídicas. Os resultados de análise pericial devem ser embasados em princípios científicos, que não devem ser embasados no laudo sem a devida clareza e lógica.
  • Princípio da Documentação: toda amostra deve ser devidamente documentada, desde a sua origem no local do delito criminoso até sua análise e descrição final. Dentro deste princípio temos o conceito de Cadeia de Custódia da prova material, extremamente importante para a construção da fidelidade das provas dispostas no local de crime, “evitando a consideração de provas forjadas, para provocar incriminação ou inocência de alguém”.

A investigação criminal deverá sempre ser realizada com rigor científico, obedecendo todo o concurso da Criminalística, utilizando-se de raciocínio lógico, embasamento científico e seguindo os conceitos da legalidade, pois à luz da Justiça, a Criminalística também é instrumento que gera argumentos para prova contundente para encontrar os infratores. Importante acompanharmos sua evolução, as novas propostas, mais robustas, confiáveis, mas sem ignorar aquilo que já é eficaz. Podemos citar por exemplo, toda a evolução das análises de DNA que tivemos ao longo dos últimos 25 anos versus a análise de fenômenos cadavéricos, que salvo condições específicas, seguem um comportamento já conhecido. Para deixar um ponto de reflexão sobre o tema, deixo uma citação do STUMVOLL, autor que permeou a maior parte das referências deste post:

A perícia criminalística é independente do tempo: principalmente sabendo-se que a verdade é imutável em relação ao tempo decorrido. (STUMVOLL, 2019)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Karina Alves. DAMASCENO, Clayton T. M. VELHO, Jesus Antonio. Local de Crime: Dos vestígios à dinâmica Criminosa. 4ª ed., Campinas: Editora Millennium, 2018.

ESPINDULA, Alberi. GEISER, Gustavo Caminoto. VELHO, Jesus Antonio. Ciências Forenses: uma introdução às principais áreas da criminalística moderna. Campinas: Editora Millennium, 3ª ed., 2017.

ESPINDULA, Alberi. Criminalística para Concursos – Candidatos a Perito Criminal e Carreiras Policiais. Campinas: Editora Millennium, 2ª ed.,2014.

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 10ª. ed., Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015.

STUMVOLL,Victor Paulo. Criminalística. Campinas: Editora Millennium, 7ª ed.,2019.